quarta-feira, 26 de maio de 2010

Testemunha



- Mãe, eu nasci?

- Como é, menino?

- Eu nasci?

- Tá ficando doido?

- Eu não me lembro de ter nascido. Às vezes acho que só surgi, sempre fui assim. Mas lembro de ser criança, lembro de ser menor. E tem os sonhos. Mas não lembro de nascer.

- Pois eu lembro. Tinha uma cabeça enorme que quase me partiu no meio. Parecia um coco de tão dura, levou umas doze horas para sair de mim. Depois veio todo sujo, coberto de tudo o que você puder imaginar.

- Eu era muito pequeno?

- Não. Bom, claro que era, senão como ia sair de mim? Mas não era tão pequeno, era forte, tinha cabelos e ficava olhando. Não parecia que tinha acabado de nascer, mas era muito sensível, chorou muito.

- O mundo me assustou.

- Como você sabe? Acabou de dizer que não lembra.

- Presumo. O mundo me assusta até hoje, deve ter sido um primeiro impacto horrível, especialmente o barulho.

- Você sempre foi muito medroso.

- Medroso não, mãe. Sensível.

- Levou tanto tempo para aprender a dormir sozinho. Se metia na cama da sua irmã, na minha, da avó. Era uma guerra, eu tinha que mandar colocar fechadura nos quartos para você aprender a dormir só. Tinha medo do escuro.

- Lembra do armário velho?

- Que você escalava para passar pelo espaço entre as paredes e o teto e ir dormir na minha cama, quando a casa não tinha forro? Como que podia se arriscar a quebrar o pescoço só para não ficar no próprio quarto? Tinha medo do escuro, mas não tinha medo da altura, isso eu nunca entendi.

- Nada é mais assustador que a solidão, mãe.

- Mas você nunca ficou sozinho. Era só o quarto ao lado. Você via monstros, filho?

- Via.

- E deixou de ver?

- Não, eles viraram companhia. Agora só tenho medo quando querem muito me dizer alguma coisa que não quero ouvir. Monstros são terríveis quando precisam chamar atenção.

- Você não existe, filho.

- Claro que existo, você confirmou que até nasci. Mãe, você não pode morrer.

- Que é isso agora?

- Se você morrer, eu nunca vou ter nascido. Fico sem confirmação.

- Que absurdo.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Tela em Branco




Venho tentando escrever e não consigo. A primeira frase vem. Eu imagino meu tema, penso em como o texto precisa ficar, digito algo que a fonte disse e que vai servir de título e então, pronto, travo. Eu releio o que escrevi e nada mais acontece. Preencher essa página em branco parece completamente distante. Uma vida completa de distância. Por que é sempre assim comigo? Por que às vezes uma clareza absurda, como se minha voz fosse o som mais natural do mundo fluindo por um caminho de metáforas, se tantas outras é essa seca de idéias, esse abismo; como se nunca tivesse feito isso. Rejeito tudo o que escrevo. Acho banal, clichê, melodramático e sem talento.

Detesto a palavra “talento”. Parece uma condenação. Ou tem ou não. Mas não mais do que a palavra “inspiração”. Por que não pode ser como pagar uma conta no banco? Apenas levante-se e faça. Os textos jornalísticos costumavam ser assim. Uma fórmula simples, calculada: Responda cinco perguntas. Escolha o mais importante. A primeira frase tem que pedir mais uma informação da segunda e feche o período. Abra e feche.

É quase cirúrgico. O mais importante é saber o que se deixa de fora. Então inventaram esse tal de jornalismo literário e toda a segurança foi por água abaixo. Agora é uma questão de criação, de sensibilidade. É muito difícil fazer algo contra a vontade se muito do seu eu tem de estar presente na coisa. Mas por que eu não quero? Sempre foi o jornalismo literário, sempre foi. Sempre foi sentir as coisas, contar histórias e se deslumbrar. Sempre foi dar vazão a esse caminhão desgovernado que sou por dentro.

É tão frustrante não escrever, é como se eu fosse um guerreiro que não batalha, um médico que não cura. Li o que preciso, sei o que preciso. Então escreva! Pelo amor de deus, não deve ser tão difícil assim, nem é tão especial assim, é só colocar uma palavra atrás da outra, você não precisa ser o próximo Dostoyévski, seu pretensioso! Você mal tem coragem de soletrar Dostoyévski sem checar no Google. Seja coerente.

Só preencha sua página. Foi o conselho que você recebeu, Ronan: Preencha o espaço em branco.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Crescido




7h 30 – Acordar, tomar café, banho
8h15 – Editar Telejornal
9h40 – Marcar entrevistas
10h – Escrever texto do jornal

12h – Almoçar
13h – Ir para o trabalho, pegar o carro, superar o medo do último acidente
14h – Consolar Beatriz*, que vai ligar
15h – Empacotar, despachar, telefonar, carimbar, ouvir bronca do RH por causa dos atrasos
16h35 – Tomar um café, desmarcar dentista de amanhã (Não vai dar tempo, mesmo)
17h – Ler jornais na internet
18h – Preparar pautas
19h – Começar qualquer tarefa absurda que a chefia mandou no último minuto do expediente e que provavelmente vai tomar umas 2h

21h – Ir pra casa, se perguntando pra quando remarcar a aula de inglês perdida
21h30 – Ser feliz, quase esquecera
22h45 – Ler algum livro e dormir

terça-feira, 18 de maio de 2010

Bandeira vermelha

Digam o que quiserem os ideocratas, nada é mais revolucionário que o tesão.