quinta-feira, 15 de julho de 2010

VENHA VER


Texto publicado no blog do movimento Arte em Andamento que reúne e fomenta o diálogo entre artistas de todos os tipos em saraus no Rio de Janeiro.


O jornalista amapense Ronan Nascimento vive em Brasília e dia desses redescobriu a cidade. A redescoberta deu origem a um artigo escrito especialmente para nosso blog.



Sobre Brasília, Clarice Lispector certa vez escreveu que era uma cidade na beira do abismo. Saindo demais de seus limites, a pessoa cairia pelas beiradas. Quando ouve isso, Janaína Miranda, fotógrafa e artista plástica, tem um sobressalto e aponta para Humberto. Ele vive dizendo isso!. Humberto Lemos, também fotógrafo, é carioca recém-chegado em Brasília há dez anos. É uma constante que pessoas vindas do Rio ou de São Paulo reclamem da falta do que fazer no Distrito Federal. A própria Clarice escreveu sobre a solidão opressiva das ruas, digo a ele.


Acho isso ofensivo, defende-se a moça, Morei aqui a vida toda e não sinto esse marasmo. Mas Humberto conta que ao chegar odiou a cidade com todas as forças. É muito nova. Tem outro ritmo. Você precisa descobri-la seguindo caminhos escondidos. Humberto foi o idealizador do Fotoclube508, onde Janaína é aluna e professora. Uma comunidade de fotógrafos que há cinco anos faz pesquisas da linguagem fotográfica e projetos de inclusão visual.

O número 508 faz referência à quadra em que o grupo começou a dar aulas, no Espaço Renato Russo. Outra peculiaridade local: As ruas não têm nomes para se localizar. Apenas letras e números. CRS 508 significa Comércio Residencial Sul 508. Cartografia militar que visa simplificar, mas confunde visitantes. O excesso de praticidade deixa pouco espaço para a poesia, reclamam recém-chegados. Como criar laços com uma rua chamada “W3”?


Mas, então, algo acontece. Uma biblioteca pública com jardim interno escondida na 308 Sul. Idéia esquecida de Lúcio Costa para as quadras fechadas. Velhinhos praticando Tai Chi Chuan nos imensos gramados da 104 Norte. As árvores retorcidas pelo solo desértico formando corredores de folhas caindo entre os blocos. Ipês explodindo amarelo ou rosa onde deveriam haver esquinas. E a luz. Uma luz que parece mais vagarosa do que em outras cidades, embora venha do mesmo sol.


Talvez essa calma, essa lentidão, seja uma impressão que a luz deixa, explica a professora. É como se Brasília fosse planejada para aproveitar o máximo de iluminação, do primeiro até o último fiozinho de sol no horizonte. “Mas ela é”, interrompe Humberto, O plano piloto foi construído para ter prédios pequenos, com pilotis por onde as pessoas podem passar. E a luz, do meio do planalto central, também passa.


É fácil não prestar atenção. Uma das maiores dificuldades de Janaína é mostrar aos alunos como perceber a luz. Cada hora do dia, ensinam os fotógrafos, revela outro mundo. Profundo e sensual pela manhã, chapado e com sombras sólidas ao meio-dia. Com uma lua gigantesca, indecente, sozinha num céu limpo às nove da noite, descreve Humberto. O que se ganha em Brasília é tempo, reflete Janaína. Tempo para ver.


Fotos: Janaína Miranda (principal), Humberto Lemos (corpo do texto)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Enlouqueça, mas permaneça

Hoje acordei e tinha um e-mail da minha amiga Maíra, que não vejo há tempos que bastam, me sugerindo esse texto aqui. É um depoimento do Irlam Rocha, do Correio Braziliense sobre o Cazuza, "o garoto que não gostava de guetos", como diz o Irlam. O e-mail da Mah era assim:


"sei lá
quando li esse depoimento do irlam, pensei em vc
te acho meio rebelde, meio livre, meio curioso, meio chocante
meio (ou inteiro, melhor dizendo) cazuza, esse cara foda, com ideias geniais que até hoje me faz arrepiar quando escuto as suas músicas
no seu caso, palavras

bejos

Maíra Brito"

Foi um e-mail bom de começar o dia. Não é a primeira vez que alguém me associa à imagem-modelo do exagerado. Daí resolvi publicar aqui uma parte do e-mail que mandei de volta:

"Mah,

O Cazuza parece que abriu alas para uma geração de garotos como eu. Esses meninos magricelas, cheios de grito e de vontade, inclusive a vontade por outros meninos. Mas, particularmente, ele sempre mexou muito comigo. Quando eu era criança, lá no Amapá, lembro de passar uma tarde de sábado com a minha mãe me ensinando a cantar as músicas dele. Eu nunca tinha visto uma imagem sequer da figura, mas senti esse arrepio que a gente sente com as letras. Acho que a gente sente isso com tudo que é muito honesto, muito verdadeiro.

Mais tarde, quando eu tinha treze anos, minha irmã teve um sonho louco que até hoje me intriga, sonhou comigo num hospital, morrendo do mesmo jeito que ele. Não sei se o sonho veio da mesma comparação que você fez, se era um terror que rondava a imagem que ela tinha dos homossexuais ou se aquele era um futuro possível. Prefiro pensar na primeira opção. Acho que o Cazuza fez algo mais por nós, essa geração de meninos magros. Ele nos contou, antes que pudéssemos experimentar, que somos mortais. Que esse grito precisa de dose, que pode ter mais um dia para nascer feliz.

Acho que somos todos uma reencarnação dele, às vezes. Andando por aí com nosso grito à tiracolo. Vivendo na ponta do coração."

Sempre que escuto alguém falando "Quero viver minha juventude" ou algo do tipo, penso: Bom, fique à vontade, mas eu quero viver minha vida toda. E quero que ela seja ótima. Deve ser um otimismo ingênuo e piegas, mas já que esse é o meu Show, então faz parte.

Para finalizar, a tréplica da Maíra: "A morte do Cazuza deixou o recado: enlouqueça, mas permaneça". E é isso mesmo.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Não aceito Jabás

Outro dia estava relembrando com uma prima um episódio da infância. Num famigerado natal, a família reunida, primos de outros primos, aquela farofa toda. Um menino com quem eu não me dava muito trouxera um brinquedo novo, causando alvoroço e frisson na meninada. Ele era a esse tempo um caçula um pouco apagado, me contou minha prima, ofuscado pelas atenções que a irmã mais velha recebia sempre. Era o momento dele de brilhar. O brinquedo era alguma coisa robótica que devia disparar raios gama e fabricar sorvetes enquanto se transformava numa espaçonave. Enfim, muito legal. E todos aguardavam sua vez para mexer na geringonça, até que surgiu o assunto polêmico. Bom, não era bem uma polêmica. O menino, dono do transformer ou sei-lá-o-quê, só estava comentando como Papai Noel tinha deixado a coisa ao pé da sua cama. Não era uma polêmica, até eu começar a polemizar a situação.


Antes mesmo deu explicitar meus argumentos sobre como a Coca-Cola havia inventado o velhote para tirar uma grana dos bobocas no natal (teoria muito popular no colégio público já nessa época e o pobre do menino era de escola particular); enquanto eu contava como minha mãe achava absurdo trabalhar para comprar meu presente e um ser barrigudo do pólo norte levar os créditos entrando por uma chaminé inexistente (nós éramos do Amapá, pelo amor de deus), fui, é claro, proibido de sequer chegar perto do treco luminoso. A menos que, e aqui é possível perceber o sadismo das crianças, estivesse disposto a rever meus conceitos.


Não guardo nenhuma imagem do que era aquela porcaria. Mas aprendi uma lição importante: prefiro defender meu ponto de vista a brincar com o pirocóptero alheio. Claro que esse posicionamento definiu bem minha popularidade entre primos e colegas na escola (0%).

A guarda

Pouquíssimas pessoas entendem o que é consolar. Não tem a ver com lições de moral ou mensagens como “Seja forte”. Tem a ver com repartir a dor para a tristeza acabar mais cedo. Tem a ver com enxergar o valor daquela dor. Quem consola não deve dizer ou insinuar que quem sofre é fraco por se deixar sofrer. Quem consola deve ver ali um herói, por mergulhar nessa tristeza até alcançar o fundo, e estender a mão para quando o outro quiser emergir, apenas esperando que não ele não se afogue. Consolar exige muita paciência. E humildade.



Enxergou-a de longe, como um borrão vermelho e laranja naquela luz. Desviou das poças d’água pelo caminho e das partes mais lamacentas do chão, brilhante, refletindo a lua. Quando começou a subir a encosta, sem poder evitar o barulho do granito rolando abaixo dos seus pés, ele já estava pronto para rendê-la em seu posto. Terminou de subir e pôs o xale dela de volta no ombro, deixando a mão se demorar um pouco mais, para dizer a ela o que queria dizer. Ela entendeu.


E começou a descer devagar, logo depois de ter enterrado o nariz na dobra do pescoço dele. Com cuidado, foi fazendo o caminho para casa, do mesmo jeito que ele o fez até ali. Acompanhou-a com os olhos e então voltou a olhar o horizonte, assim que ela fechou a porta. Preparou-se para passar as próximas horas ali, vigiando o vazio. Em guarda do luto.