terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A morte é um milagre

Vóvó se foi. Voltamos todos a ser crianças desde o momento em que ela adoeceu. Quando a notícia chegou, nos aninhamos uns nos outros e nos afastamos dos demais, não por orgulho, mas porque só podíamos conviver com os que sentem a mesma dor, senão a solidão nos devora. Mas não ficamos mais de um minuto sozinhos, porque minha avó tem muitos netos. Netos adotados, netos auto-proclamados que de bom grado abaixavam a cabeça para ouvir suas broncas e comer seu feijão. Minha avó cozinhava como quem diz “eu te amo”. Abundantemente. O tempo inteiro. Cozinhava e, cozinhando, multiplicou a família. Eu não aprendi suas receitas. Não aprendi como fazer o bolo macio e fofo. O cuscuz doce com leite de coco. O pudim. Mas aprendi a brigar como ela. A chamar atenção dos amigos. Dar broncas, me meter onde não sou chamado. Aprendi a me importar. A estar por perto, puxar para um abraço. Minha avó era generosa com o que tinha. Era extremamente sentimental e, por isso, durona. A um tio meu ela dizia para não baixar a cabeça quando chorasse. Chorasse de cabeça erguida, deixando o vento levar as lágrimas enquanto levantava da queda. Minha avó era exímia na arte de levantar. E também era corajosa. Fomos grandes companheiros de aventuras na minha infância. Cruzamos o amazonas de navio, Belém de ônibus e o mercado do Ver-O-Peso a pé. Quando cresci, ela reclamava do meu jeito desleixado e do cabelo cumprido, mas gostava que eu me escondesse da família para ficar lendo numa rede no seu quarto. Minha avó sabia curar com banhos e ervas, contava histórias trágicas e fantásticas sobre assombrações e desconfio que ainda amava meu avô. Gostávamos de conversar na cozinha. Uma vez me disse que, se pudesse ter escolhido uma profissão, seria detetive. Porque sempre adivinhava o final dos filmes e novelas. Gostava de me sacanear e beliscar quando me via ensimesmado. E de me mandar lavar uma louça para curar angústias existenciais (método infalível, constatei com os anos). Tinha uma risada inconfundível, era excelente contadora de piadas e seus olhos enchiam d’água quando gargalhava. Como se dissesse que, apesar de tudo, a vida ainda lhe dava presentes. Da última vez que nos vimos, falamos sobre as crianças ribeirinhas que seguiam o navio Catamarã, quando fazíamos o trajeto Macapá-Belém pelo estreito do município de Breves. Eram meninos e meninas que se aproximavam em barquinhos e para quem os passageiros – nem tão mais abastados – lançavam roupas velhas, brinquedos e comida em sacolas de plástico. Ela se lembrou rindo de quando eu, com uns seis anos de idade, fui tomado por um arroubo de compaixão sem limites numa dessa viagens e quis arremessar tudo o que tínhamos. Inclusive a roupa do corpo. Perguntou se eu lembrava. E eu lembrava. Então, por um momento, tive a certeza de que estávamos pensando a mesma coisa: A vida foi muito generosa conosco. Agora, vóvó se foi. E a morte dela é como um milagre que vem me mostrar o quanto sua vida foi preciosa. O quanto toda a vida é preciosa, frágil e vasta, porque se morre. E pelo quanto posso ser grato. Pelo tempo, pelas horas e por todo o amor que recebi. Esse amor que agora me sobra em palavras que não pude dizer, em gestos que não tive. Amor a mais. Amor que resta. Amor que fica. Vive-se.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O tempo não é linear

Liguei o gravador, um pouco atrapalhado. Ele pigarreou, mas parecia tranquilo. Será que ele gostaria de me fazer achar que estava tranquilo? As mãos tremeram um pouco, as dele, as minhas. Fiquei pensando que tipo de memórias isso - ligar o gravador, um jovem repórter se certificando de que o espaço entre o aparelho e a fonte era o suficiente, não sabendo exatamente onde apoiar o bloquinho - traria a ele. Será que foi repórter por muito tempo? Seguiu com essa vida, encontrou alguma felicidade nela? Percebi que devia ter estabelecido algum tipo de coesão entre as minhas perguntas - nunca consigo lembrar o que quero perguntar a menos que anote e as perguntas sempre me parecem amadoras depois que escrevo -. Será que ele teria resolvido esse mistério? Ou será que, como eu, se sentiria uma farsa nessa persona jornalista? Tanto para saber. Olhei-o. Ele aguardou. Liguei o segundo gravador.

- Vamos começar?
- Quando você estiver pronto - me disse com um gesto da mão, como se concedesse licença.

Observei as manchas na pele. Pressenti as dores da velhice. Mas não senti o pânico usual que os velhos me provocam quando despertam piedade. Achei um pouco fascinante.

- Quantos anos você tem?

- Mais de três vezes o que você tem, mas não muito mais, eu imagino.

Sorriu. Eu também. Ele sabe exatamente o motivo da pergunta, pensei. Não muito mais, senti um arrepio pensando nas mensagens subliminares disso.

- Gosto do brinco - ele me disse, acho que para cortar um pouco a unilateralidade da entrevista. Ou talvez isso fosse importante para ele também. Devia ser.
- Obrigado. Nunca pensou em colocar?
- De novo? Não. Nem em deixar o cabelo crescer novamente, embora seja grato por ter sido poupado da calvície. Suponho que nunca perdemos a vaidade, realmente.
- O que é uma pena.
- Depende.
- Do que?
- Não perdemos a vaidade, mas podemos perder esse pesar por não perdê-la.

Anotei isso. Ele riu.

- As palavras soam sábias, mas são só belas frases. Isso nós perdemos também.
- O gosto por belas frases?
- Não. A ânsia por sabedoria. Que não é nem um pouco sábia. Uma contradição tremenda, não é? Mas você se torna mais sábio quando abre mão de querer ser sábio. A sabedoria vira uma surpresa. E muitas vezes ela não faz a menor diferença. Você não faz ideia do que me perguntar, faz?
- Eu preparei algumas perguntas, sim. Mas agora ela parecem banais. Pequenas. Ou tão gigantescas que parecem absurdas.
- Como o que?
- Como "como é a vida de escritor?"

Ele riu de novo.

- Trabalhosa, se você puder se desvencilhar do egoísmo e escrever de verdade. Como qualquer outro trabalho. Na verdade, a criação é a parte mais simples. Os prazos, as metas, os planos, tudo isso é que é o pulo do gato.
- Mas todas essas coisas não matam a criatividade?
- É um tipo de morte, se você parar para pensar bem. Mas o tipo de morte que compreende a coisa numa outra vida. A criatividade encarna num livro, pode-se dizer. Numa obra que já não se pode alterar, que não cresce em tamanho ou em qualidade. A menos que você produza outra.

Desse ponto em diante, lembro que a conversa ficou dinâmica.

- Olhando por esse aspecto o livro é um objeto morto.
- Reencarnado.
- Mas já não é pleno em potencial.
- Não para quem o escreveu.
Subitamente, entendi.
- Entendi. - disse a ele, para, em seguida, ter a nítida sensação de que já havia esquecido.

Ele riu.

- Não se preocupe tanto. No fim, você saberá como lidar com cada coisa quando ela surgir. A gente nunca esquece de verdade, sabe? O segredo é confiar nisso.

Então acordei. E passei um tempo pensando sobre por que o mais importante que eu tinha a me perguntar era a respeito de ser um escritor. Achei um pouco obsessivo, na real. Eu podia ter perguntado sobre filhos. Sobre doenças, sobre, sei lá. Mas foi isso que eu perguntei. E foi essa a resposta que eu ganhei. Parece meio piegas olhando agora. Foi o que eu disse para você.

Acho que você só queria saber se eu estaria com você depois de todos esses anos, mas ele não me disse nada a esse respeito. Nem eu perguntei, desculpe. Suponho que ele/eu tenha achado graça na ideia de que eu nunca saberia, só vivendo. Te disse isso e você disse: "Bem a sua cara". E eu concordei e me dei conta de que ele provavelmente estava me sacaneando o tempo todo. "A ânsia por sabedoria não é sábia", ele tinha me dito. Exatamente o tipo de frase capaz de quebrar minha cabeça. Então rimos. Eu e você. E ele em algum lugar no futuro. "Acho que vou ser um velho bem simpático, amor". "Vai sim". Então acordei. E você estava lá.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sis'

My sister is my keeper.
She keeps me safe as she keeps me childish.
She doesn't wanna me to grow up,
but she makes me feel like I'm growed old.

My sister is my best friend
and the one who never gets what I mean.
We can't ever figure ourselves out.
That's why we're brothers,
so we can't undestand each other,
because we don't need it to.

That's what you have to love about.
The thing that love is all about:
Never understand, never figure it out; and love anyway.
Any way.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Não

- Deixe aí.

Eduardo olhou assustado para Enrique.

- Deixa ele aí, Eduardo. Vai morrer antes de você conseguir levantar o galho.
- Mas eu preciso tirar ele daqui debaixo, pai. O galho caiu porque você jogou a bola nele.
- Eu sei, Eduardo, mas não tem o que fazer. Olha como o galhou entrou. Provavelmente perfurou o tórax. Se você mexer, ele vai sofrer mais.

Enrique não queria que o filho visse o sangue escorrendo ou as tripas do passarinho espalhadas no chão, por isso o segurou pelo ombro. Se Eduardo mexesse um pouco mais no galho, o pássaro se abriria como uma caixinha de música, ele sabia. Então o menino veria um amontoado de entranhas escuras. Se fosse Pedro, Enrique o teria deixado prosseguir, porque o outro filho se veria deslumbrado numa curiosidade um tanto tórrida, mas perfeitamente natural pelo funcionamento interno de um ser vivo. Mas Eduardo já estava à beira de uma crise de choro. Gemia a cada pio do bicho, a pele arrepiada com o pressentimento da morte. "PAI!", ele tinha gritado com uma recriminação acentuada no grito. Esse tom de voz com o qual Enrique estava começando a se acostumar e parecia sempre vir do filho. Tinha gritado antes que Enrique pudesse entender que a bola não o tinha acertado quando a chutou, talvez com mais força do que devia - agora pensava com arrependimento.

Queria achar que Eduardo estava prestes a chorar e ia se deixar levar pela sua mão. Mas não, o filho se esquivou.

- Anda, Du - tentou dizer com ternura.

Eduardo colocou o rosto tão perto do chão, para ver com mais exatidão onde o galho tinha atingido o pássaro, que sua bochecha chegou a tocar no sangue.

- Levanta daí, Eduardo - disse, querendo ir embora e contrariado com a teimosia do filho.

A voz veio fria:
- Não.

Enrique puxou o filho. Nem tanto pelo sangue, nem tanto pelo chão. Mas pela desobediência. Pela insolência. Nesse gesto, no momento do gesto, lembrou do rosto do pai num flash e seu aperto se afrouxou. O filho, que tinha o corpo mole, escapuliu pelos dedos sem resistência. Uma promessa velha de nunca obrigar um filho a não fazer o que não quisesse roubou sua força. Quase, pensou. E então olhou para o filho cheio de culpa. Mas o garoto estava distraído. Parecia até não ter percebido a interrupção do seu escrutínio sobre o pássaro semi-morto, sobre aquela morte inútil, e muito menos se importar com os duelos internos do pai. Não. Enrique olhou admirado. Pedro teria pedido para abrir o passarinho. Não, não como quem luta. Não simplesmente como quem não irá. Não como quem sabe que não irá. Não era um desrespeito do filho. Era uma constatação de quem ele era. Ali, bem ali, o garoto dava os seus termos ao pai. Não. E o rosto dele voltou a encostar na pequena poça de sangue. Não e aquele pássaro morreria de fato. Mas não sozinho. E talvez Enrique fosse culpado quando Eduardo chegasse em casa e dissesse à Claudia O pai matou um canário. Não e Enrique achou que o filho trocaria de lugar com o pássaro se pudesse e, por um minuto, teve medo de quantos galhos jogaria ainda, por descuido, sobre esse menino tão disposto a ser um mártir. Tão disposto a lhe enfrentar assim, com seu sofrimento, a lhe enfrentar sem lhe infligir outra dor que não a própria. Não. E Enrique pensava se os homens sempre matam os filhos de algum jeito. Não.

- Vamos esperar até ele ir. E então o enterramos. Depois vamos para casa, tá bom, filho?

Eduardo o olhou. E o viu.


quinta-feira, 26 de maio de 2011

O discurso amoroso

A pior coisa no começo do amor deve ser não saber o que dizer. A gente quando é de gêmeos não sofre disso. Mas deve ser horrível. Deve ser horrível receber um poema de amor e não ter como responder; ouvir de uma última hora uma declaração e ficar com os olhos arregalados de mudez.
O discurso de amor é coisa que se aprende, ensinam os bardos, os poetas e os cafajestes. E até os filósofos. Porque, afinal, em termos semióticos, que vem a ser o amor senão o que falamos dele? Mas há os que para isso têm talento - demais ( os perigosos ) - e os por completo incompetentes. Deve ser triste não saber falar de amor. Imagina não lembrar um poeminha, uma palavra bonitinha, uma breguicedade qualquer para inventar mirabolantemente boca afora, pouco antes que se encontrem as línguas, boca adentro. Verdade seja dita que amor não se faz de versos e uma música citada não é amor. Amor, na prática, é qualquer coisa a mais que vem depois ou nesse ínterim, até junto, só não só isso. Mas uns versinhos, vá lá. Uns versinhos deixam qualquer um meio mole, até se ruins. Até se bregas e, vez por outra, principalmente se bregas. A breguice referenda o discurso amoroso, quando bem empregada. A breguice é o vintage no discurso. Resgata-se o velho como quem busca pureza. Mas há quem ande por aí a se mandar estrofes e trechos, roubando sempre das palavras de outrem o que nunca souberam dizer. Comigo isso não funciona. Não sei de outros, mas não entrego meu coração a plagiadores. Citações são bem-vindas, mas o discurso amoroso requer alguma originalidade. Não propriamente talento, mas coragem. Ou tolice. E, no fim, que diferença há?

quinta-feira, 19 de maio de 2011

No divã II

A psicanálise não conserta sua vida. Ela simplesmente tira a maquiagem que você tinha passado por cima daquilo que estava quebrado. Ela só te revela a extensão da bagunça.
Não é uma coisa mística, sabe? Não é uma coisa surreal, que precisa de um pêndulo, balançando de um lado para o outro, te fazendo entrar no subconsciente ou sei lá o que.
É algo muito simples. É uma coisa de prestar atenção no que você fala. É coisa do tipo "Meu celular tá cortado". "Por quê?" "Porque não paguei a conta" "Umm...". É idiota.
É simples e burro assim. Mas se você puder transferir essa simplicidade para todas as coisas, acaba percebendo o que está por trás da bagunça. Os pactos secretos que fez. As dívidas que contrai sem perceber. Dívidas materiais. E dívidas simbólicas. E toda a culpa. Porque a culpa cristã não é menos do que uma dívida que nunca vai poder ser paga. E, no meio de tudo isso, muito bem escondida, essa criaturinha maluca e bizarra que não se planeja para pagar uma conta.
Essa criaturinha que fala coisas como "Quero ir embora daqui, essa cidade já deu o que tinha que dar". E acaba ouvindo algo como: "E você já terminou a pilhagem?", como se fosse um soco no estômago. Porque quando se evita crescer é isso o que viramos. Umas criaturinhas maníacas, bizarramente egoístas. Que acham que merecem receber e receber e receber, quando deviam estar oferecendo. Não, a psicanálise não conserta sua vida. Lacan não te faz alguém melhor. Lacan ri de você. E te manda embora antes que você possa esquecer o que acabou de dizer, antes que esqueça o som dos seus absurdos. Lacan ri, lá do seu túmulo, ele ri de toda a maquiagem que você coloca e suspira com as suas justificativas.
Porque ele te faz ouvir o que você mesmo fala. E, quanto mais você escuta, mais trabalho você percebe que vai ter para dizer alguma outra coisa. Alguma coisa menos absurda. E quanto mais trabalho você tem, ironicamente, mais você acaba gostando. Não exatamente de si - e agora você sabe do perigo por trás disso -, mas do trabalho. Do trampo que dá. E você preferiria dormir, verdade seja dita. Mas não vai. Porque a psicanálise não conserta sua vida. Você conserta.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Desamado

Se ninguém te ama, vem ser desamado aqui, vem. Vem sem o amor. Vem perdido, sem futuro para hoje. Sem o quando chegar. Se ninguém te ama, vem sem dançar. Deita aqui, sem amor. Senta na beirada da cama, encolhido no canto com os pés escondidos na coberta. Deita como quem não aguarda; quem não tem amor não precisa agradar. Faz a cara de quem ficou, de quem sobrou na festa, de quem errou o caminho e chegou no fim, quando todo mundo já tinha um par. Faz cara de menino deixado no canto, no canto da cama, da balada, do agito, da noite. Faz cara de quem chega e toca a campainha e nunca tem amor. Vem sem ser amado, chega desarmado. E então fica.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Homoamor

Mais que do sexo, eu sinto falta de ter um homem em casa. Percebi isso esses dias, olhando meu apartamento. Sinto falta de mais um homem. Vai ver é porque eu não sou homem o suficiente para a casa inteira. Mas acho que é só porque sinto falta de ver alguém de cuecas no domingo, olhando a geladeira, coçando a cabeça com cara de sono e concluindo que só sobrou mesmo o queijo. Eu sinto falta do cheiro de alguém ficar misturado com o meu cheiro no cheiro da casa. E dessas outras pegadas todas que a gente deixa quando mora com alguém; eu deixo livros no banheiro, deixo meias e revistas entre as cobertas, deixo a calça jeans na poltrona, porque uso a mesma durante dias. E tem quem ache isso nojento. Talvez outro cara achasse isso nojento também. Provavelmente teria um monte de outras coisas que eu acharia nojento. Sinto falta de achar alguém nojento. Não muito. Mas só o suficiente para lembrar que não somos a mesma pessoa, nem fomos criados do mesmo jeito. Só o bastante para rir. E até para se irritar um pouco e, quem sabe, aprender alguma coisa nova. Ou não aprender nada e irritar ele bastante. Tem gente que acha isso válido também. Não sei o que é isso. E tenho cada vez menos vontade de explicar, para mim ou para os outros. Se é carência - mas não ando triste -, se é doença ou se é amor, eu sei lá. Nesses últimos tempos eu já não sei dizer o que é amor. Freud diz que é narcisismo. Amar o amor. Mas não é só comigo que eu quero dormir. Pode ser que eu tenha sido criado com mulheres demais e agora sinto falta desse pedaço. Vira homem, gritavam os homofóbicos na escola. Quem sabe é isso. Nesse processo de virar homem, ficou faltando metade. Não sou homem o bastante para a minha vida. Preciso de mais um. Tem tantas palavras. Homossexualidade para dizer com quem eu gosto de fazer sexo. Homoafetividade para dizer que não é só sexo. Tem até homotextualidade para falar do que eu escrevo. Estamos sempre categorizando e até acho que isso faz sentido. Acho que é reconhecendo as diferenças que o espaço e os direitos do outro são respeitados. Não forçando o mundão num pacote que diz Olha lá como somos bonitinhos, todos iguais. Entendo isso politicamente. Mas, pessoalmente, eu olho para a minha geladeira e penso: Taí. Casar é legal. E fico feliz de o Estado reconhecer isso também.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Entram pelas frestas

Como eu queria ser Sofia Coppola. E filmar tudo com a delicadeza necessária para que a felicidade pudesse ser mostrada com a fragilidade que tinha em cada momento dessas lembranças que me assaltam na madrugada. Acho que registrar é uma forma de abrir mão de memórias que nos assombram. Fixá-las numa forma e lhes dar adeus.

Numa entrevista, perguntei a escritora Elvira Vigna, que usa confessadamente do material biográfico nas obras, como ela sabia que momento da vida merecia virar literatura. Ela me respondeu: "Primeiro: não há escolha. Segundo: Não merece. Aquilo que você escreve não merece. Não é merecer. É obsessão. É ser perseguido."

O que podia ter sido é do que a gente precisa se libertar. E eu quero acreditar que há uma chance na literatura ou na arte. Mas Elvira contou, em segredo, que um personagem ainda a perseguia. Mesmo depois de ter sido escrito em um livro, de ter virado catarse, ele voltava. E ela ainda o via pelas ruas.

"Estou fodida", declarou.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Estética e canela

Estive lendo umas críticas instigantes à noção de "sentido" dentro das obras literárias. A ideia geral é que cada vez mais as obras vão se dando conta de que a busca interna de todo mundo não é de verdade por um "sentido" que coloque a vida numa perspectiva e torne possível dizer se ela valeu ou não valeu a pena. Mas também não é uma coisa de sair dizendo "Ok, não tem sentido nenhum nessa budega mesmo, let's go crazy, enfiar qualquer coisa aqui e chamar de arte". A questão na verdade é que há uma busca interna, afinal, mas é uma busca por uma estética; algo como dizer que a coisa toda - a vida, a obra de arte, a literatura, enfim - vale a pena se puder ser considerada bela de alguma forma, se construir uma estética própria ou coerente. Acho que é isso, se eu tiver entendido bem.


Tudo o que eu realmente sei é que vou sair daqui e comer dois waffles com sorvete de banana, farofa imperial, calda de caramelo e um pouquinho de canela. Sabe, pode parecer que a canela é um exagero por cima de tudo isso. Mas o fato é que é a canela que compõe a estética da obra. A coisa não é menos doce sem a canela. Aquilo é açucar para matar muitos gordinhos. Mas a sensação do belo não se traduz. Mais ou menos assim: Todos os ingredientes citados são apenas esses ingredientes postos juntos de qualquer forma, sem a canela. Com uma módica dose do pózinho marrom, contudo, a coisa toda pode ser chamada de amor. É como eu vejo.


É uma questão metafísica. Diabética, provavelmente. Mas metafísica principalmente.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

No divã

Sabe, fazer análise é como puxar o fio. Você tem um fio solto na sua roupa e você poderia cortá-lo. Sua avó te ensinou a cortá-lo, qualquer pessoa sabe que cortar é o que precisa ser feito porque senão as consequências podem ser desastrosas. Você pode acabar com um buraco imenso no meio da sua camisa favorita ou sem uma manga. A maioria das pessoas tem um pavor inconsciente de fios soltos e com razão. Há pessoas inclusive que andam com tesourinhas na bolsa para lidar com eles de forma rápida, asséptica e indolor. Mas a verdade é que todos nós temos um desejo secreto, assustador, de puxar os fios. De sair puxando e ver cada laço, cada nó se desfazendo; de esquecer por um momento o quanto gostamos daquela camisa, do quanto ela nos fazia parecer belos e atraentes e seguros de nós mesmos. E quando nos distraímos e nos deixamos levar por essa vontade, subitamente acordamos no ponto de perceber que talvez seja tarde demais. Nunca poderemos usar essa roupa de novo.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Tenho, antes que anoiteça, ao menos tinha (título provisório)

Esse texto surgiu de um exercício literário, digamos assim, entre eu e o Gabriel Hargreaves, o Gabo. A partir de um frase dele, ficamos os dois de construir um pequeno conto, de três parágrafos no máximo. A frase é a que está no título. Meu conto é o que está abaixo. O dele dá pra ver clicando no hiperlink. Foi muito divertido de escrever e estamos pensando em fazer disso uma prática.


Tenho, antes que anoiteça, ao menos tinha até agora pouco essa vontade louca de casar com Marcelo. Queria mesmo. Queria logo daqui a pouco, nessas próximas horas de sol com esse céu azul bem azul desse jeito que ele está. Queria a ponto de sentir a textura da toalha branca estendida na mesa de madeira clara da mãe dele, no meio do jardim que dá pros fundos. Queria a ponto de ver o vinho escorrer pela borda dos copos e formar circulos na toalha branco perolada que só se segura do vento por causa dessas taças finas. Queria a ponto de sentir a luz entre as árvores antes de qualquer um poder entrar para me contar o quanto essa bobagem toda é homo demais, bicha até pra mim, antes de qualquer um interromper o "sim".

Quando Marcelo me pediu em casamento estávamos saindo da exposição dos gordinhos colombianos. Tantos gordinhos, tanta tristeza. E, ao mesmo tempo, uma felicidade naquela gordura, uma felicidade assim gostosa engordurada. Deve ser bom ser gordinho e oleoso e engordurado assim. Deve ser bom casar com Marcelo e passar essas tardes engorduradas em galerias, comendo torradas com tomate picado com manjericão por cima e engordar e engordar e engordar. Deve ser bom não passar base nas olheiras todas as manhãs, deve ser. E usar uma daquelas roupas coloridas. Meu deus. Usar um poncho. Será que Marcelo me daria um poncho? Eu queria amar Marcelo e amar um poncho e não amar tanto meu cabelo. O fato é que Marcelo está ficando careca. Não vou dizer isso a ele, é claro. É cruel. Mas é muito triste porque ele não sabe. Talvez fosse menos triste se ele soubesse. Existe uma certa dignidade em saber que se vai ficar careca e sofrer por isso.

Mas o pior mesmo é se ele souber e simplesmente não se importar. Não sei se posso conviver com isso. É ridículo demais. Imagina eu cabeludo e Marcelo careca sem se saber careca ou sem se importar andando pelo parque. Não quero casar. Não posso ser rídiculo assim. Ele tem 25 anos, está ficando careca e quer casar comigo. Como pode? Essa com certeza não é a vida que eu quero pra mim. Eu quero ir para Montevideo e dançar nos ossos do meu avô; quero conhecer um milhão de artistas e estrelar um desfile de roupas étnicas e quero meus cabelos nas costas. Assim, exótico. Assim, livre. Mas, então, o que faço com todos aqueles gordinhos?

sexta-feira, 25 de março de 2011

Envelopinhos de papel

Quando eu era bem criança, bem menino, nem lembro que idade tinha, mas era pequeno, passei uma noite cortando jornais. Peguei cola e fui cortando os jornais em retângulos. Eu tinha aprendido a fazer envelopes, aí peguei esse monte de jornais e fui recortando, dobrando e colando até virarem um monte de envelopinhos feitos com as notícias e lembro que fiquei achando isso super bonito envelopes de notícias e depois não sabia o que ia fazer com tudo aquilo, porque não sabia por que tinha feito só tinha aprendido a fazer envelopes e queria fazer de novo, até cansar. Aí os levei para a escola no dia seguinte e dei para as pessoas, meus colegas de turma, todos eles, os envelopes de notícias e eles foram recebendo aquilo meio estranhando e abriam os envelopes e não viam nada dentro e, aos poucos, foram ficando furiosos. Porque não tinha nada dentro dos envelopes e jogavam no chão e me perguntavam gritando porque eu tinha dado aquilo e eu não sabia responder. Eu dei porque eram envelopes e me parecia lógico que envelopes fossem coisas de entregar. Não cheguei a pensar que algo tinha que estar dentro desses envelopes. Até hoje essa imagem vem na minha cabeça quando escrevo. Eu me pergunto "por que estou dando essas palavras?" meio receoso da fúria que ocasiona de entregar a alguém alguma coisa que para esse alguém não tem sentido.

Eu não sei qual é a resposta.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Ferida aberta

E sempre acontece o momento em que te procuro na memória como quem se distrai abrindo curioso a casca de uma ferida. Como se nunca tivesse feito isso antes, sou pego de surpresa pela mesma dor. Não outra. A mesma, que lateja igual, embora envelhecida. Antes que possa alegar inocência, já estou me acusando de estúpido. Acaso não sei que esse é o exato motivo pelo qual não se curam tantos corações partidos e amargurados que já vi pelo mundo? Acaso não obtive o mesmo resultado com procedimentos idênticos? O que espero que aconteça de diferente?
Mas, no íntimo, sei que essas perguntas servem apenas para despistar minha consciência do que é de fato grave. Que é na dor aguda da lembrança que você deixou que resta a sobrevida do amor que podíamos ter vivido. E se muito embora eu não pretenda confrontar esse feto moribundo ao longo do dia, não posso deixar que morra de uma vez. Seja pelo medo masoquista de que não me sobre nada no escuro seja pela esperança cruel de que, se um dia você quiser voltar, poderá ressuscitá-lo.

terça-feira, 8 de março de 2011

Ode ao bobo, o sentimento Vinícius

“Você sabe o que é o amor? Não sabe. Eu sei. Sabe o que é um trovador? Não sabe. Eu sei”

Ando aficionado pelo sentimento Vinicius. Não é pela pessoa do poeta, nem pela sua história, embora tudo isso influencie. Estou aficionado pelo sentimento das palavras e do jeito desse homem de escrever. Houve um tempo em que eu me acharia bobo; estupidificado por versinhos simples e nacionalistas. Cantando temas de novela pelos cantos. Rindo uma risada meio trôpega nas conversas com amigos, vítima de uma boemia clássica e ultrapassada. Mas hoje fico com vontade de escrever um Ode à bobagem. Um Ode ao Bobo. Poesia tem sido um processo. Sou da teoria de que não se aprende a ler poesia como qualquer outro texto. Harold Bloom, um crítico norte-americano, diz que poesia precisa ser lida em voz alta, porque parte do entender poesia vem de conseguir sentir a musicalidade das palavras. Com Vinicius não poderia fazer mais sentido.

Existe uma tristeza no poetinha que não anula a vida. É uma resignação - como diz José Castello na biografia O poeta da paixão -, mas é se resignar à tristeza que faz parte da felicidade. Não impede a felicidade de acontecer. Essa é a mensagem dos orixás em seus afro-sambas de 1962. Amor e dor, dizem os deuses negros, é preciso sentir ambos. É também psicanálise em forma de música. Eros e Tanatos, desejo e morte, as duas forças que precisam estar em oposição para que a vida aconteça.

E o Vinicius de Moraes veio ensinar uma coisa muito importante. Ele veio nos contar que as bobagens - o ridículo - essa linha tênue entre o discurso de amor e o clichê, o bobo, é uma coisa muito séria. Que rimar peixinhos e beijinhos vem de uma melancolia verdadeira e profunda. E, na poesia dele, essa melancolia não é restrita aos inteligentes, aos cultos e elitizados do pensamento. Ele nos diz que só quem conhece a melancolia do desencontro, da solidão e do perdido é que sabe se apaixonar. Assim como só quem tem saudades de casa é que faz uma pátria. Mas esse conhecimento nada tem a ver com o grau de instrução de uma pessoa. Esse conhecimento é dado a quem se permite viver. A paixão tem a ver com estar vivo. Sofrer tem a ver com estar vivo. O Vinícius, falando de amor em Itapoã, veio nos contar que a tristeza não é privilégio dos ricos. Portanto, o amor também não é. O que acho mais bonito é pensar que o "se apaixonar" não é talento inato ou fado divino. É uma habilidade. Uma aprendizagem.