sábado, 29 de janeiro de 2011

Cercado

Lendo o famoso perfil que o jornalista Gay Talese escreveu sobre Sinatra, “Frank Sinatra está resfriado”, este texto me surgiu. Algo na breve descrição do relacionamento entre o cantor e Ava Gardner o trouxe à tona. Como uma onda que leva à praia qualquer coisa que havia estado presa entre os corais

Você era uma estrela brilhando, cercado de gente, requisitando e recebendo atenção. Alimentado por amigos, por passantes; conhecidos que eram imediatamente brindados com o convite para se juntarem à festa, ao séquito do qual você necessitava para estar no mundo. Eu, que sempre precisei do silêncio, incomodava-me com os olhares e os gestos. Eram palavras ditas sem propósito, na dança batucada das conversas de bar. Era uma necessidade de ser gentil, porque não via sentido em destratar essa gente que nada tinha a ver com meu isolamento. Não eram eles que me invadiam. Era eu que, sem compreender aqueles convites para me juntar à algazarra, invadia a noite alheia com a minha solidão.

E você me puxava pelo braço, buscava meu olhar distante, dizia vem. Vem, sem desistir do seu orgulho, nem ficar pequeno diante da minha prepotência de considerar pobres os que não escutam o silêncio. Vem. Mas eu sempre fui assim. Quando criança, inventava nos quintais de casa meus espaços secretos. As fortalezas da solidão do Super-Homem. Vem. E eu te via brilhando, como se te observasse do alto de um prédio, rodopiando na brincadeira de festejar. E eu sentia ciúmes. Não de toda aquela gente, porque eram só rostos esmaecidos, eram só uma multidão. Eu sentia ciúmes dessa entrega. Vem. Uma entrega de quem domina a arte de se fazer sumir no meio de muitos e chama atenção porque se mescla.

Hoje eu entendo; entendo que o que a gente chama de amor são tantas outras coisas. Mas na verdade o amor é essa tensão que existe bem no meio, entre todos esses desejos dissonantes de que são feitas as pessoas. E, enquanto esperamos paz, o amor - ou a cousa que em realidade existe e que talvez seja o mais próximo que se pode chegar da invenção do "amor" - na verdade é o conflito. Esse conflito entre o seu chamado e a minha recusa; bem no meio dele. Não é o seu chamado que é o amor. Não é a minha recusa, mesmo que a minha recusa viesse com um outro convite inconfesso - de que você se juntasse a mim na solidão -, também não é esse outro convite. Ambos os convites são apenas todos os desejos que eu carregava e você carregava já muito antes de nos conhecermos e vamos carregar muito depois. O amor é a tensão entre os nossos desejos. O atrito.

Enquanto você queria não se sentir só, cercado de gente, e eu queria alguém que entendesse meu silêncio, havia amor. Depois alisamos nossas superficies e o amor passou.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Mãinha

Mãinha sabia que era médium desde os seis anos de idade. Tinha recebido suas cartas da madrinha e, na época, achara que aquele pequeno baralho colorido com borboletas e dançarinas eram o mais belo brinquedo da casa. Não demorou muito para descobrir que as cartas não vinham em duplas e, portanto, não se podia jogar com elas o jogo da memória. Não como o conhecia. A memória que as cartas evocavam era a memória das histórias, das vidas que foram vividas num tempo sem tempo na roda das Eras. E esse jogo Mãinha só pôde aprender no correr de sua própria história, acertando e errando, abrindo caminho nessa arte antiga e imprecisa que é prever o futuro olhando o passado.

Criou seis filhos e, entre eles, pouco lembrava quais tinha posto no mundo e quais o mundo é que lhe dera. Desses seis, apenas um se tinha desencaminhado e, por ele, não havia nada que ela ou os búzios pudessem fazer. Há histórias, contou-me, que rolam abaixo numa pedreira e, uma vez postas a girar, só param quando se espatifam no fim. Não sei se foi porque ouvi pacientemente seu relato ou por alguma sorte que tenho até nos lugares mais inusitados, mas nos tornamos amigos imediatamente. E fiquei logo à vontade para lhe perguntar se minha história era uma dessas rodas sem freio correndo rumo à destruição.

Ela riu. Riu, sobretudo, da minha calma, que disse ser falsa. E zangou-se com minha insistência em continuar a me comportar como um menino, quando tudo a minha volta me gritava para ser homem. “Mas você tem a tranqüilidade do leão, porque essa é a sua lua. E o leão só sai da toca ao sentir fome”, e voltou a rir, depois da zanga. Foi embaralhando seu carteado e eu fui vendo, em suas mãos, as mãos da menininha que deve ter sido. Criando intimidade com o baralho, pedindo a ele que falasse da minha história. E eu fui imaginando essa mulher, velha como o mundo, conectar-se ao chão como se tivesse raízes. Lembrando a foto de uma xamã guatemalteca que vi na infância e com o que imagino que se pareçam os sábios aos jovens heróis no começo de suas jornadas.

Pouca cor sobrara nas cartas escolhidas por mim e que ela agora virava para me contar os segredos. Vi a borboleta e vi a dançarina e, por elas, levei mais alguns safanões para entender logo que já era hora de pisar firme no chão, pois ele estava prestes a se sacudir sob meus pés. Mas vi também o lobo e a roda, falando sobre lealdade e aventuras num país distante. Vi sombras sobre as quais não falarei aqui e, quando achava que já era o bastante, eu vi Mãinha subitamente curiosa, virar-se para mim e, com uma inocência inesperada, perguntar-me:

“Você está esperando alguém?”. E, de algum lugar de dentro, ouvi minha voz responder convicta “Sim”. Mãinha, para minha surpresa, tinha mais perguntas “Quem?”. “Não sei”, eu disse simplesmente. Foi aí que aconteceu. Os olhos dela se encheram de lágrimas e meu peito se apertou e eu acreditei.

Acreditei nas cartas e acreditei na anciã e acreditei que tudo tinha um sentido e que essa solidão, essa solidão tremenda, é isso. Essa ausência, que é a minha ausência no meio da multidão, é isso. Uma espera resignada. Uma espera. Enquanto eu estava envergonhado, apanhado sem avisos nos emaranhados de uma fé que disfarço como curiosidade antropológica, ela afagou minha mão. “Tão humilde”, me disse. “Apesar de toda essa fachada, você é humilde”. E eu quis chorar, abaixei o rosto e, porque há mesmo uma humildade secreta em esperar, me senti feliz. Orgulhoso de ouvir pela primeira vez na vida. “Você é humilde”, repeti em pensamento. Por algum motivo inescrutável, minha nova amiga concordou.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Páginas do meu livro

http://www.fotolog.com.br/ronannascimento

http://www.ovodacodorna.blogspot.com/

http://patavinas.zip.net/


Espalhadas esperando costura e capa.

O passado manda cartas

Não é estranho vagar pela internet e encontrar seu próprios textos, perdidos no limbo, escritos anos atrás? Encontrei esse aqui no fotolog de uma amiga e foi como se recebesse uma carta direto de 2008, do garoto que eu fui em 2008, escrito de um jeito que talvez fosse o jeito exato para que o entendesse hoje. Escrito numa época em que ainda não me preocupava, ou ainda não havia absorvido a preocupação com a objetividade, com linearidades, com ser compreendido. Numa época que escrevia muito mais para mim que para os outros. Não tenho vontade de voltar a esse tempo, nenhuma nostalgia. Mas senti saudade desse garoto de 2008 e fiquei feliz, realmente feliz, por ele ter mandado lembranças.

E fico pensando: se pudéssemos mandar uma carta ao passado, o que será que escreveríamos?

Trecho

06/02/08

"alguns dias eu nem acredito das coisas das quais faço parte
Veja o menino que fui; o que tinha certeza de que a vida passaria num quadro impressionista, retratando eternamente aquele mato orvalhado cobrindo a terra lamacenta do quintal. E o único lugar para o grande, para o notável, seria a tela daquela cabecinha de menino, de imagens rápidas, sólidas e surrealistas. É esse menino que se isola no quarto com outras telas repletas de artificialidades pontilhadas e digitais, a salvo dos sustos de notar a vida notavelmente grandiosa que construiu sem se saber construindo – pois de outra forma, inclusive, poria tudo abaixo -, para tomar algum fôlego, pois os anos passam e ele ainda guarda a sensação de que a felicidade é vertiginosa, estranha expansiva. Que lhe descompressa os pulmões e exige ar, tomando espaço, ocupando; com um agir intuitivo de levantar a mão e se imprimir no mundo.

Mas essa felicidade é um sopro, está claro. Veja como escrevo: falando a você, sempre a você – querendo ser visto (bem, isso é humano, nós sabemos) -. Só que tão pequeno, tão comprimidamente. Um comprimido de texto. Como se diz das crônicas de humor, só que sem graça. Espere.

Eu sou simplesmente um produto do meu tempo (olhe que tolice: acabo de dizer “isso é humano”. Como se tudo mais, inclusive eu, não o fosse) assim vivemos, sentimos e lembramos. Tudojunto. Pequeno e rápido, talvez não se viva. Mas certamente se fala assim. Economizando. Um ponto disso, um ponto disso e você já sabe o que quero dizer, então para que precisamos ter isso dito? Nós dois, eu e você, temos pressa, mesmo que seja uma pressa tranqüila. É porque vamos apenas passar. E a sua vida na minha mente fica sendo um retrato impressionista.
Então temos tristeza. Eu noto tristeza; bom, na verdade noto uma vaga sensação de perder algo e lembro da familiaridade, da expressão no rosto dos outros, do nome que ouvi: tris-te-za. É bonito. É a questão do impressionismo, existe sempre mais de uma sugestão, quando vi uma, perdi outra.
Seria bom poder escolher que impressão levar. Talvez a tristeza da infância esteja nisso: nós não escolhemos a impressão que trazemos, mas algo aqui soube das possibilidades. Que o mato orvalhado poderia ter sido uma selva e a lama, areia movediça. Sem telas voyerísticas do mato e contemplações surrealistas eu teria sido mais feliz? Ou só teria sido qualquer coisa que não sou.

Falta sempre um fecho. Digo a mim mesmo quando isso acontece: “você está com medo de dizer tudo”. No entanto quando é que dizemos tudo? Diz-se que deixar brechas é tão pseudo-profundo. Mas outro dia disseram de mim que, por sempre delinear tanto e trazer cada ponto, sou por demais didático. Como se isso fosse uma coisa ruim. Como se para imprimir tivesse de ser vago. Como a vagueza no notar a felicidade das coisas que andam e funcionam na vida."

(Ronan Nascimento)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Pedido de Reveillon


Fazia algum tempo que ele não me ligava. Há um mês ou mais eu havia ligado, mas ele não atendia. Foi um não atender que dizia que alguma coisa sobre não ligar. Assim, não liguei. Agora me via atendendo com aquela calma de quem assiste a um filme. Foi dizendo que estava sozinho em casa com uma amiga, os pais viajando. Era engraçado aquele dele receio de convidar, de dizer. Esperei, sorri e esperei.

Estava com o mesmo sorriso quando a porta do elevador abriu. Um sorriso de olhar para baixo, rindo do chão. Me chamou de querido. Sempre me chama assim e é verdade de algum jeito, porque sempre me sinto querido, quisto ou bem-vindo, enfim. Já não tinha nada daquele receio. O mesmo receio da última vez que nos encontráramos; andando depressa, ansioso, a boca endurecida, os olhos correndo aos lados, a despedida apressada. O mesmo receio do telefone; o medo do meu não, o medo do meu sim. E eu sorrindo, esperando aquele “querido”.

Deitamos no sofá, um filme qualquer da amiga e eu assistindo este filme dele, notando, anotando. Seu cheiro me distraindo, inspirando. Ele vira de súbito, com um sorriso tão grande que parecia uma risada “Vamos pro quarto, querido”. Nenhuma pergunta. A amiga ficou na sala, dormiu, viu filme, fez um café. Todo mundo é solitário em alguma noite, mas essa não era a nossa. Ele sabia disso, daí ria. Ria com o vento frio, ria do lençol, ria uma risada gostosa, de menino brincando na praia.

No meio da noite me acorda; não fala, mas tem medo. Tem medo do barulho do vento, tem medo de se afogar no meu sono e tem medo desse meu sorriso, desse sorriso calmo, que nem eu sei de onde vem. Começa uma fala gaguejada, parando nas frases, voltando atrás. Espera minha insistência, finge que se irrita com a minha curiosidade. Pergunto pelas beiradas. Quero entender esse receio que dá o ritmo de todos os encontros. Não porque quero que mude. Não porque não o aceite, pelo contrário. Ele me intriga, esse gaguejar eloqüente. Uma história se querendo contar.

“Sabe, querido ”, ele disse, simplesmente “Eu já conheci muitos filhos-da-puta”, e não diz mais nada. Então minha curiosidade vira tristeza. Porque naquele silêncio não tinha mais gaguejar. Só silêncio e frio. E veio surgindo em mim uma vontade enorme de dizer todo o resto. De dizer que os filhos da puta estavam aí e que vida tem disso de quebrar o coração da gente. Mas que nada é para sempre, nem a alegria nem a tristeza. Veio uma vontade de falar do mar, para ver se ele ria de novo aquela risada de praia. Vontade de contar que eu nunca tive medo do mar, que queria me agarrar nas ondas e ir embora agarrado nelas, puxado pelos dedos, mas elas quebravam na areia me fazendo engasgar.

E de dizer finalmente que não dá para se agarrar a uma onda, por mais que se tente, mas que desapego também não é isso. Desapego não é se sentar no seco, num lugar que a onda não chega. Desapego é mergulhar. Vendo a maré encher, sentindo-a passar. Mas não disse nada. Talvez por covardia, talvez por não querer ser também um filho da puta prometendo mais do que podia cumprir. Só o apertei mais forte no peito e, naquele quarto frio e seco, pedi que não tivessem roubado a vontade daquele menino de entrar no mar.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Mais um ponto - 2011


Tem sido difícil manter o blog, afinal. O último post foi de um conto que me surgiu a partir de uma frase tensionando ser irônica e acabou se revelando bastante triste (o que não é incomum às ironias):

E jamais, em anos de convívio, qualquer um dos dois bateu na porta ao lado. Ambos educados demais para invadir a mútua solidão.

Ele terminaria assim e pronto. Como terminaram muitas crônicas ao longo dos anos e dos blogs que já tive. Sem que os personagens pudessem crescer, tomar ar e se desenvolver. Fico me perguntando quantas figuras já matei antes que pudessem viver uma aventura propriamente dita. (Assisti Stranger than Fiction de novo e me suscitou a paranóia). Não sei se é uma patológica falta de imaginação ou questão de estilo, mas me viciei em janelas. Em olhar por janelas uma pequena cena da vida e narrar como se fosse tudo o que houvesse; uma foto ao invés de literatura.

E aí me bateu essa ideia disparatada: Por que? Por que ficar com uma janela ao invés de construir a casa? Por que deixar os dois sem nome, o primeiro e o segundo, e por que deixá-los sem amor por não poder imaginar algo substancial o bastante para que o amor, ora, para que o amor tivesse uma chance? Por que ficar com a constância estética da tristeza?

Não. Já é a hora do erro, do novo, do ir até o final. Pode ser uma grande peça de ficção. Pode ser ridículo.

Mas pareceu... apropriado.


Feliz 2011