quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Vozes no quarto

- Eu conheço você.
- O que isso quer dizer?
- Eu sei que você não vai voltar. Você vai ficar aqui até me fazer dormir, vai ser gentil em não me acordar. E então vai embora e não pretende voltar.
- Eu pretendo voltar.
- Jura?
- Não.
- Então não vai voltar.
- Não sei se vou voltar. Mas eu pretendo. Nesse momento, eu pretendo. Eu pretendo com toda a força do mundo, eu pretendo voltar todos os dias. Quero terminar aqui todas as noites.
- Mas só nesse momento?
- Não vou mentir para você.
- Sabe o que eu mais gosto em você?
- Não saber se eu vou voltar?
- Não. Saber que você não sabe. E, mesmo assim, diz isso com toda a gentileza do mundo. A maioria das pessoas nunca é gentil. Eu não sei ser gentil.

- Eu sou gentil até quando sou cruel. E não costumo mentir. Não há mistérios aqui.
- Você era misterioso, não é mais.
- Você me delatou.
- Para quem?
- Sei lá. Me delatou. Para o quarto, para as roupas no chão. Foi me delatando. Estou aqui agora, delatado.
- Bobo.
- É verdade.
- Você podia ficar.
- Talvez eu fique. Por que você não espera até amanhã para descobrir?
- Porque quem vai ficar sabe que fica.
- Não é bem assim.
- Como poderia não ser assim?
- Tenho essa sensação estranha...
- Umm...
- Acho que a parte de mim que decide se fico ou se vou ainda não escreveu essa história. E nem vai.
- Engraçado.
- O que?
- Essa mesma parte de mim soube desde o início que eu queria que você ficasse.
- É cruel, não é? Essa parte.
- Acho que está tentando ser gentil.
- Com você? Ou comigo?
- Com ela mesma.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Meu nome é Camilo, prazer.

‘Me encontra em La Paz, no dia 5, em fevereiro’, eu disparei, sério como um menino. Feliz de saber que ele entristeceria quando eu partisse, que talvez fosse uma tristeza de me aguardar. E ele disse sim. 'Sim, é claro'. Mas então riu. E quando riu me roubou até o prazer de saber que ele gostaria de me iludir. Roubou aquela doçura. Agora eu viajaria sem imaginar que ele iria ao meu encontro se pudesse. E você pode me dizer que isso não faria qualquer diferença porque, afinal, ele não podia. Mas faria sim. Faz. Ilusões assim protegem o amor nas distâncias. Acolchoam o amor. No aeroporto eu soube que não voltaria mais. Se você é alguém como eu, que faz do amor a sua casa, acaba aprendendo a ter malas permanentemente prontas. E desaparecer vira um hábito. Ou uma vocação.


Ainda nesse esquema de não deixar meus personagens morrerem, estou trazendo para o blog alguns ecos de vozes que já surgiram e nunca mais disseram nada. Tudo o que sei sobre Camilo é que ele foi para La Paz e provavelmente sentou em alguma praça no dia 5 de fevereiro, acendeu um cigarro e imaginou como seria sua vida se tivesse feito um convite para alguém que o aceitasse. Ele está desaparecido desde então.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Branco

Tiravam a roupa assim que esgotavam as palavras. Não levava muito tempo. O gesto não era exatamente automático; havia uma excitação genuína no primeiro momento, enquanto as peças caiam pelo chão e revelavam a pele. Mas o que se seguia a isso era um certo silêncio, uma certa qualidade do silêncio, que indicava que ainda não queriam estar completamente nus. Queriam continuar se despindo. A excitação era isso. Queriam continuar tirando peças infindáveis de roupas, trezentas camisas, quatrocentos jeans desbotados e ridiculamente apertados, treze pares de meias, quinze cuecas, vinte cuecas, cinqüenta cuecas, cento e oitenta e duas cuecas. Todas as cuecas do mundo até acabar aquela angústia. Até estarem livres dessa eterna pergunta sem rosto.

É aqui que queríamos estar?

O sexo era performático. Bonito. Cheio de músculos. Um sexo moderno. Eram manequins completamente desprovidos de pêlos ou cheiros. Sem fluidos. As bocas secas, as mãos rígidas. Esganavam-se quando tentavam se abraçar. Eram deuses. Pensavam estamos na moda. Eram a moda. Sorriam e, olhando para os corpos um do outro, aumentavam a potência. E então ele vinha. Ansiado, desejado. Esse último líquido ainda permitido, mesmo que só fetichizado. Esse tema de misterioso escrutínio nas piadas populares. Símbolo de dominação, símbolo do nirvana.

Escorria pela pele lustrosa como mármore. Riam-se dele, satisfeitos. Sem derrotas, sem vitórias. Satisfeitos. Então, ironicamente, um deles o espalha com a mão cheia pela barriga delineada do outro. Confirmando sua satisfação para a plateia inexistente. Foi perfeito, ele sussura. Perfeito.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Desmenino

Gabo,


O poeta é um menino. Eu mesmo só escrevia poesia quando era menino. Antes disso, roubava poesia de uns livrões pesados, antigos, da biblioteca da escolinha pública. Ia lá na biblioteca, pegava os livrões, copiava no caderno escondido. Porque, sem que ninguém me dissesse, eu esperava que fosse proibido isso de pegar aqueles livrões e copiar. Só olhar pra eles devia ser proibido, porque ficavam no alto e eu tinha sete anos e os meninos de sete anos não são para ficar mexendo em livros. Isso de ser proibido deixava mais bonito. Lia e ficava dizendo para mim, sem entender palavra. Ficava fascinado que as palavras tinham uma coisa de ser dita. Não sei mais explicar. Mas era fascinante pra mim que as linhas desenhadas eram palavras e que eu passava os olhos e saiam da minha boca feito som. Ficou um pouquinho desse fascínio em mim e é por isso que você, meu amigo, gosta tanto que eu te leia em voz alta. Me fascina ainda que as coisas bonitas saiam de gente que nem você e sejam lidas por gente que nem eu. Em voz alta, para dizer ao mundo, para espantar demônios, para ver se as linhas ganham forma ao redor da gente e escrevam nas pessoas o amor. Eu escrevia poesia quando menino também. Depois desmenineci. Escrevo outras coisas, escrevo isso, escrevo para você também. Mas não escrevo mais poesia. Só leio poesias e te falo para continuar sendo menino e escrever cada vez mais como menino. Não desmenineça, meu amigo. Não desmenineça, não.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Cinco pedaços

Às vezes sinto a ausência de meus irmãos como se fosse no corpo. É como se ao redor de mim devesse estar reunido um pequeno exército e esse exército me falta. Faltam-me cinco membros, quatro deles se movendo do outro lado do país e um deles em outro continente. Não é uma ausência momentânea e por isso não sinto da mesma forma as saudades da irmã que foi criada comigo e que agora também se move fora do Brasil. A presença dela está aqui, mesmo sem estar. A falta desses cinco que foram criados longe de mim em todos os sentidos é a falta de uma vida. Não. É a falta de cinco.

Não sei como explicar essa sensação sem falar das diferenças culturais entre o país em que vivo e o país de onde vim. Nasci no norte do Brasil. E esse é um país completamente diferente de Brasília. Acho que em qualquer lugar é possível compreender a conexão profunda dessa coisa abstrata, porém sólida, altamente criticável e ao mesmo tempo essencial aos indivíduos chamada família. Porém não sei se é possível entender da mesma forma a questão do corpo. Quem já foi ao norte sabe o que eu quero dizer. Sabe o que é ser chamado de “maninho” até pela atendente da companhia aérea. O norte tem heranças indígenas que não foram completamente aniquiladas na colonização. É muito mais que as expressões e a comida. É o toque, o calor.

É estranho explicar que até os dez anos de idade eu tomava banho com meus cinco irmãos mais os primos que estivessem nas redondezas, completamente pelado e sem saber o que era vergonha. E acho que meus amigos devem olhar com estranheza que meu irmão caçula, hoje um atleta de quase dois metros, forte o bastante para me arremessar por uma quadra de futebol, fique enciumado de saber que minhas irmãs dormiram na minha casa e passamos a noite conversando. A ponto de declarar com plena segurança depois de um filme que pretende dormir comigo e, sem esperar permissão, se jogue na minha cama para me contar seus planos para o futuro. Deve ser difícil entender a ingenuidade dessa carência.

Sabemos que não nos criamos da forma como gostaríamos; brigando por espaço, nos engalfinhando por um pouco de privacidade, odiando a ridícula mania de super-proteção uns dos outros. Particularmente, eu os invejo. Eles são cinco. E, parece mentira, mas consigo imaginar perfeitamente suas discussões por telefone, no viva-voz, criticando e rindo de nossos pais, uns dos outros, todos ao mesmo tempo. Juro que o roteiro de Brothers and Sisters foi baseado nos meus irmãos, porque eles são exatamente daquele jeito. Pelo menos no que tange a não se meterem onde não são chamados. Meus irmãos se metem. O tempo todo. Exatamente como eu faço.

Talvez eu procure amigos que são como uma família pela falta dessa. Ou talvez seja simplesmente algo do sangue. O fato é que às vezes quase escuto o barulho que fazem. Procuro suas presenças como se tivessem chamado meu nome e desejo do fundo coração que estejam bem e que possam lembrar meu número se precisarem de ajuda. E os abraço, fechando os olhos. Luinne, ágil e firme como o são as bailarinas. Luane, sempre emotiva, rebelde, tão parecida comigo que me assusta. Junior, inocente e gentil feito a infância. Lorran, o menino-homem mais bonito que já conheci e Gabi, minha apaixonada e sábia Tereza. Cacahuèté. Filha de Iemanjá, irmã e mãe. Tenho seis irmãos. Um pequeno exército pessoal que se ama um amor feroz. Em certas noites, procuro por cinco deles na memória para entender melhor as partes que me faltam e enfrentar o mundo.