quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O tempo não é linear

Liguei o gravador, um pouco atrapalhado. Ele pigarreou, mas parecia tranquilo. Será que ele gostaria de me fazer achar que estava tranquilo? As mãos tremeram um pouco, as dele, as minhas. Fiquei pensando que tipo de memórias isso - ligar o gravador, um jovem repórter se certificando de que o espaço entre o aparelho e a fonte era o suficiente, não sabendo exatamente onde apoiar o bloquinho - traria a ele. Será que foi repórter por muito tempo? Seguiu com essa vida, encontrou alguma felicidade nela? Percebi que devia ter estabelecido algum tipo de coesão entre as minhas perguntas - nunca consigo lembrar o que quero perguntar a menos que anote e as perguntas sempre me parecem amadoras depois que escrevo -. Será que ele teria resolvido esse mistério? Ou será que, como eu, se sentiria uma farsa nessa persona jornalista? Tanto para saber. Olhei-o. Ele aguardou. Liguei o segundo gravador.

- Vamos começar?
- Quando você estiver pronto - me disse com um gesto da mão, como se concedesse licença.

Observei as manchas na pele. Pressenti as dores da velhice. Mas não senti o pânico usual que os velhos me provocam quando despertam piedade. Achei um pouco fascinante.

- Quantos anos você tem?

- Mais de três vezes o que você tem, mas não muito mais, eu imagino.

Sorriu. Eu também. Ele sabe exatamente o motivo da pergunta, pensei. Não muito mais, senti um arrepio pensando nas mensagens subliminares disso.

- Gosto do brinco - ele me disse, acho que para cortar um pouco a unilateralidade da entrevista. Ou talvez isso fosse importante para ele também. Devia ser.
- Obrigado. Nunca pensou em colocar?
- De novo? Não. Nem em deixar o cabelo crescer novamente, embora seja grato por ter sido poupado da calvície. Suponho que nunca perdemos a vaidade, realmente.
- O que é uma pena.
- Depende.
- Do que?
- Não perdemos a vaidade, mas podemos perder esse pesar por não perdê-la.

Anotei isso. Ele riu.

- As palavras soam sábias, mas são só belas frases. Isso nós perdemos também.
- O gosto por belas frases?
- Não. A ânsia por sabedoria. Que não é nem um pouco sábia. Uma contradição tremenda, não é? Mas você se torna mais sábio quando abre mão de querer ser sábio. A sabedoria vira uma surpresa. E muitas vezes ela não faz a menor diferença. Você não faz ideia do que me perguntar, faz?
- Eu preparei algumas perguntas, sim. Mas agora ela parecem banais. Pequenas. Ou tão gigantescas que parecem absurdas.
- Como o que?
- Como "como é a vida de escritor?"

Ele riu de novo.

- Trabalhosa, se você puder se desvencilhar do egoísmo e escrever de verdade. Como qualquer outro trabalho. Na verdade, a criação é a parte mais simples. Os prazos, as metas, os planos, tudo isso é que é o pulo do gato.
- Mas todas essas coisas não matam a criatividade?
- É um tipo de morte, se você parar para pensar bem. Mas o tipo de morte que compreende a coisa numa outra vida. A criatividade encarna num livro, pode-se dizer. Numa obra que já não se pode alterar, que não cresce em tamanho ou em qualidade. A menos que você produza outra.

Desse ponto em diante, lembro que a conversa ficou dinâmica.

- Olhando por esse aspecto o livro é um objeto morto.
- Reencarnado.
- Mas já não é pleno em potencial.
- Não para quem o escreveu.
Subitamente, entendi.
- Entendi. - disse a ele, para, em seguida, ter a nítida sensação de que já havia esquecido.

Ele riu.

- Não se preocupe tanto. No fim, você saberá como lidar com cada coisa quando ela surgir. A gente nunca esquece de verdade, sabe? O segredo é confiar nisso.

Então acordei. E passei um tempo pensando sobre por que o mais importante que eu tinha a me perguntar era a respeito de ser um escritor. Achei um pouco obsessivo, na real. Eu podia ter perguntado sobre filhos. Sobre doenças, sobre, sei lá. Mas foi isso que eu perguntei. E foi essa a resposta que eu ganhei. Parece meio piegas olhando agora. Foi o que eu disse para você.

Acho que você só queria saber se eu estaria com você depois de todos esses anos, mas ele não me disse nada a esse respeito. Nem eu perguntei, desculpe. Suponho que ele/eu tenha achado graça na ideia de que eu nunca saberia, só vivendo. Te disse isso e você disse: "Bem a sua cara". E eu concordei e me dei conta de que ele provavelmente estava me sacaneando o tempo todo. "A ânsia por sabedoria não é sábia", ele tinha me dito. Exatamente o tipo de frase capaz de quebrar minha cabeça. Então rimos. Eu e você. E ele em algum lugar no futuro. "Acho que vou ser um velho bem simpático, amor". "Vai sim". Então acordei. E você estava lá.