quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Amor

Corpo despedaçado
receitas herdadas
caldos, às despedidas
 bolos adoçados


Arca-mãe,
matriz milenar.
Matilha matriarcal
Maria

Família, fogão
feito fogueira


Totem
tolos
netos

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

E você, como vai?

Não tenho epopéias para contar. Nada que prenda plateias. Ando econômico com as minhas dores. Sofro pequeno. Sofro o transtorno da praticidade, igual todo mundo. Sofro a segunda-feira, o domingo, o sábado à noite - estudando. Eu nem sofro o trânsito, para economizar, nem a hora extra naquele bico que paga mal. Mas de mares revoltos e retornos improváveis, mas de lutar contra destinos trágicos, mas de amar o amor, eu já não sofro (tanto). Minha vida anda menos aventuresca, verdade seja dita. Nenhuma donzela para salvar de monstros noturnos. Hoje em dia eu conheço a pele e o cheiro de casa. Hoje em dia acompanho os naufrágios amorosos dos amigos e me compadeço dos destroços; sofrimentos de expectador. Tenho amor pelos heróis trágicos. Abro meu colo, meus ouvidos, mas ofereço pouco em sabedoria. Já fui mais sabido. Já tive mil conselhos no bolso, mapas e teoremas. E já vi tudo correr água abaixo. Hoje eu sofro de não saber a palavra que cabe. Sofro de não ter métrica, de nem saber rimar. Sofrimentos bestas. O que sei hoje é das horas. Levo o tempo na ponta da língua. Faço até planos e sofrer de ansiedade... bom, disso ainda não me livrei. Às vezes sinto falta do vento no rosto, da faca no dente, das armadilhas. Dos dramas épicos, sabe? Falta de me perguntarem como vai a vida e eu poder narrar novelas. Delírios de escritor. Logo passa. Bato na madeira três vezes. Respiro fundo até soprar longe a tempestade. Sou humilde frente ao canto das sereias e me amarro na proa. Vai que qualquer hora dessas, sem nem por vontade minha, meu navio naufraga? Não vejo porque apressar. A verdade é que as Odisséias todas são muito bonitas, mas é no dia a dia que Ulysses precisa descobrir como amar Penélope. E a gente sofre mesmo é de blábláblá.

domingo, 2 de dezembro de 2012

O tempo no pulso


"O domínio do escritor não está na mão que escreve, essa mão 'doente' que nunca solta o lápis, que não pode soltá-lo (...) O domínio é sempre obra da outra mão, daquela que não escreve, capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do lápis e de o afastar." 
Maurice Blanchot


Achei um relógio velho numa gaveta. Comprei tem dez anos. Não usei porque era muito pesado, e também porque não gostava de relógios e ele brilhava muito. Na época fiquei arrependido. Era minha primeira viagem para o exterior e aqueles euros podiam ir embora em coisa mais divertida. Eu nem gostava de relógios. Na verdade, depois daquele relógio e do arrependimento, fixei na ideia de que nunca usaria relógios. Isso, sim, foi a vantagem da compra. Como já tinha um relógio, não precisava de mais nenhum para saber que não era, afinal, uma pessoa de relógios. E segui de braço solto, livremente atrasado, pelos dez anos seguintes.
O estranho – é até provável que alguém não acredite – foi que andei pensando nesse relógio. Hoje mesmo, na verdade. Estive lembrando de quantos relógios de aniversário ficaram guardados até que a bateria esgotasse. E acabaram repassados para gente mais pontual. Lembrei porque, veja só, pensei em comprar um relógio. 
Cheguei a refletir que meu braço talvez já não se incomodasse tanto. Que já não me atraso para tantos compromissos e que acho um pouco bonito, um pouco antiquado, em tempos de Iphone, usar um relógio no pulso. 
E lembrei desse relógio de Roma, dos 14 anos, das decisões. 
Quando abri essa gaveta inocente e o achei, parei por um minuto, meio chocado e coloquei o tal relógio no pulso. Mas, dessa vez, no direito. Percebi, enquanto ajustava os ponteiros, que usei ele errado da primeira vez. Canhoto, naturalmente coloquei ele no punho esquerdo. Os relógios talvez não tenham sido feitos para gente como eu.
Dessa vez, contudo, ele pareceu perfeitamente alinhado. Achei esquisito. Olhei com certa desconfiança, meio contrariado desse alinhamento repentino. Deixei passar. Ele já não brilha tanto. E funciona, depois de dez anos. Resolvi usar por alguns dias... Talvez só até amanhã. Sem muito apego, meio coração duro, meio infantil. Como um desses cachorros maltrapilhos que a gente adota e depois perde o interesse. Mas aí lembrei que são decisões dessas, tomadas assim, casualmente, que nos definem. Senão por uma vida, talvez pelos próximos dez anos. 
Será que é assim tão ruim se alinhar um pouco? Pertencer? O pulso preso na demora e na pressa. Uma agonia foi surgindo. Saber constantemente que o tempo está passando. E se nisso de saber a hora eu já não tiver tempo de saber de mim?
Mas hoje eu já conheço essa agonia. Essa agonia nunca foi embora. A verdade é que ela é muito mais fiel que esse relógio que me esperou dez anos na gaveta. Essa agonia canhota nunca me deixou ser completamente alinhado. E nunca vai deixar. Ela é que escreve compulsivamente, que agarra a caneta, que foge do tempo. E sempre vai fugir. 
Acariciei o relógio já não tão brilhante, e ele me disse que faltavam cinco minutos para meia noite. Me disse ali do lugar dele, na mão direita, que era preciso ser responsável por ele. Responder pelo tempo. Pelo dia que terminou agora e começa outro. Pela escrita. Pelo texto. Pelo cachorro maltrapilho que se adota, mesmo que ele seja só metafórico. 
Já deu a hora.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"Palavras, palavras, palavras..."

Freud, Lacan, Guimarães Rosa,
Derrida.

Paulatinamente avança.
Passo a passo,
vislumbra alcança
tropeça
Topa tateia enxerga
Passo a passo, adentra. Entende. Brilha!
Afora, perde.

Pira.

Retoma resume reúne
retira, relata, resiste, reporta
humildemente recorta.
Se ressente covarde, reduz

Levanta.
Revê.
Não dá conta de tudo.

Do começo, (lê) mais uma vez


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Barthes

Para Aisha


Quando me apaixono, temo que meu Amor me devore. Então me afasto. Corro do outro. A menos que seu Amor seja feroz como o meu. Um Amor pode devorar outro Amor. Imobilizam-se. Acalmam-se. Se ao outro incomodam as quedas d'água, ele nada pode. É tão frágil que parece firme e forte. Tão frágil quanto a indiferença. A fragilidade do amor é um despreparo. Está sempre desprevenido, pego de surpresa pela intensidade inesperada. O Eu te amo é uma surpresa para o amor frágil. Já a saudade incontida é um grito de sufoco. O Amor está como quem aguarda. Se extasia. Mas já esperava. Sua fera espreitava o tempo da fera do outro.

Te faço homem e mulher no que tenho de mais louco. Te faço meu sintoma de loucura. És o objeto amoroso que me denuncia.  Quando nos apaixonamos, só o que iguala nossa intensidade é que a sacia. O amor do outro, tão grave quanto o meu, me aplaca. Como me aplaca a queda d'água, a tristeza do fado, o mar. Quem não se apaixona em gravidade chama o rugido furioso do mar de barulho, não aceita ser do outro sua denuncia. Quando descubro o que me fascina no outro, já não o amo. Porque descobrir não é achar. O que se descobre é ponto final, que fecha numa forma fixa o que antes era só pontilhado.

O Amor sempre termina em tragédia ou tédio. Mas, às vezes, renasce. E é preciso acreditar no seu renascer, embora sua travessia seja imprevisível, embora algum preparo para o fim seja imprescindível. O Amor não aceita fragmentar-se; terminar sem acabar. Porque mataria sua essência de fera. E não poderia nunca mais renascer.

A cena é a seguinte: Ela se sentava sempre na beira do banco, para ouvir o Amor. Sentava com as pernas entrecruzadas, os joelhos perto do queixo, as mãos segurando os dedinhos dos pés. Sentava em pouso. Daquele banco podia saltar a qualquer momento. Nesse caso, alçaria vôo pela janela, tinha pernas longas e saltava alto. Poderia também levantar-se direto para um passo de dança, onde se reuniria em alegria na companhia da amada. Mas gostava especialmente de ficar ali sentada, para ver a outra dançar.


Bordado


I 
 Isso que o nome não diz
que nos afeta -
duvida da língua - diz dobrado
responde a mim – esse sarcasmo
Apropria esse gesto.
Três dedos sobre a boca. A
nenhum lugar que tenha ido
as palavras estão.
Que é o que nos afeta,
funda o passado
quando não disse
Olhares perdidos
no cruzamento, escuta,
desfaz essa hierarquia violenta
que nos une no silêncio
Fala. A herança era dívida.
Teu direito uma obrigação.
Não te ajudaram, não te avisaram.
Conta.
Não sobrou. Não tinha.
Não veio. Não chegou,
não anda, não solta, não foi.
Não disse.
Desdenha a mensagem do pai.
Rejeita a origem, não olha no espelho.
Não envelhece. Nunca. Corre, frui. Goza.
Agora grita. Veste a angústia no grito.
Envolve o terror na seda do grito. 
Enoda no estômago,
desenlaça no grosso.
Engole. Engasta.
Entope. Ensurda.
Não ama. Corta.
II 
 Isso que volta, titubeia de volta
quer um sentido qualquer
que nos diga
Mais humilde, mais à moda da casa
Que quer dizer
Também não ama.
Vai e retorna.
Diz pior. Melhora.
Já não grita
- quase.
não conta o nome.
Finge que obedece, engatinha
troca a roupa toda.
Nenhuma serve.

III 
 Desde já agora era.
É para trás que se avança.
Quando então.

Arte e Psicanálise - em rima

Preencher o vazio não rola.
O que dá pra fazer é borda.

Arte e Psicanálise


Esse vazio no peito
Não dá pra preencher
esse vazio,
não.
Mas dá pra bordear. Esse vazio

domingo, 4 de novembro de 2012

Senão - Blanchot II

Quando dizes assim:
Preciso te dizer essas palavras
senão...

O que vem a completar a sentença
é sujeito ao delírio pessoal que criastes
última centelha de identidade
que te restou, porque estás possuído

Como exemplo, podem-se listar
pelo menos quatro torturas
elementares

Se fores sujeito de água, digamos
Completas dizendo
Senão me afogo

Mas, se és do fogo,
Explode.
se fores do ar
sufoca

E de terra
aí com nada completas
porque há muito te enterrastes
e agora precisa de alguém que te salve

Nada disso é real,
é delírio, já o dissemos
Não te afogarás, explodirás, tampouco sufocarás
(embora seja possível que te enterres e se ninguém vier em teu auxílio estás perdido)

Nenhuma dessas torturas te acometerá
por palavras não-ditas.
Mas o teu destino será muito pior

Preciso te dizer essas palavras
senão não as terei dito.

Esse é o inconcebível,
o que apavora mais que morrer
porque equivale a não ter vivido:
Não dizer.

O terror dos mortos é serem esquecidos
por isso carregamos fantasmas
O dos vivos é morrer
por isso carregamos fantasmas

Mas o terror de não dizer
não é morto nem vivo

É terror do texto.
É texto o que assombra
- afoga, explode, sufoca, enterra -
É texto que invoca fantasmas

Sob pena de condená-los ao esquecimento
porque, no fim, medo, angústia, aflição,
são sintomas galopantes de texto.


Sem artigo, sem definição
interminável, solitário e...


Texto que inventa, ameaça
manipula,

desloca - condensa

deseja, que quer,
mais texto.



Ser dito.
Senão.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Cabeça erguida


Acima de tudo, o erro
sintoma de estar vivo
Acima de tudo as incongruências
o conflito, o impossível
Acima de tudo o passo em falso
mentir é já dizer tudo o que dá
Acima de tudo a tolice, a asneira
rir de si mesmo, chorar de si mesmo
Acima de tudo a ousadia
andar no escuro, apalpar fantasmas
Acima de tudo a juventude
sempre a histeria, sempre a falta de sentido
Acima de tudo brincar os brinquedos do adulto
o dedo na tomada
Acima de tudo nunca envelhecer
nunca, nunca envelhecer e engessar.
À vida, acima de tudo, brindar
Não entendê-la, não calculá-la

Acima de tudo dançar
porque acaba.

domingo, 21 de outubro de 2012

O que deu para dizer


Você guarda facetas de mim que já não mostro, amigo. Recebeu como moedas o que hoje é tesouro raro. O que você lembra é um espelho velho, me embaça de saudade. Daquela encruzilhada que nos atravessou até aqui, os pés incharam. Nem lhe dei adeus nem esperava o seu retorno. E você volta no que tem de mais bonito me lembrando desse pacto que não conhece tempo, onde se escreveu que nenhuma dor é banal. Sou seus ouvidos, amigo; tua voz ainda é rouca, mas escuto melhor com a idade. Sou teu colo, amigo. Mas as pernas ficaram mais duras. Toma comigo o chá da tarde, o abraço antigo e a risada. Toma comigo sem culpa de ir embora e nunca mais voltar. Já aceitei que te perder é o caminho incerto de te encontrar. Desculpa a secura das palavras. Mas o se cuida também é um jeito de eu te amo.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A hora de voltar é que faz a viagem


O melhor das viagens é quando já não vemos a hora de voltar.
É assim porque é só na vontade de retorno que a viagem
vira viagem de fato.

Senão não é viagem
é mudança.

Tem muita viagem que só termina
depois de muito tempo que se voltou pra casa.

- Se não se vê nunca a hora de voltar
fique atento que não é viagem
é mudança -

(Quando se volta e ainda não se queria ter voltado
)ainda não voltamos(
E aí se corre o risco iminente de mudar
de CEP (Casa - Estado - País))

Mas às vezes é só quando já se voltou,
sem que se sinta que já se tenha voltado,
que não se vê a hora de voltar.
E aí a mudança é de volta para onde já se está

Porque é quando já-não-se-vê-a-hora-de-voltar
que a hora da volta começa.
E isso pode perfeitamente acontecer quando já voltamos
(há semanas)

Tanto quanto pode acontecer dois meses antes
da hora da volta.
E aí sim era viagem

Mas se não acontece nunca, é porque
não era viagem era mudança, e agora
se vive no lugar errado (sempre um erro)

Eu mesmo só voltei quando
me senti liberado da culpa de gastar um dia inteiro
dormindo e não sair para conhecer o desconhecido

Porque meu travesseiro era teu peito.
E era mudança.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Meninos que brincam com fósforos


Há de se lembrar que há fósforos e fósforos,
bem como há meninos e meninos.

Há os meninos que,
brincando com fósforos,
correm risco de pôr fogo
na casa

E há meninos que
brincando com fósforos
correm com o risco
de incendiar a alma.

Mas, como andam juntos,
muitas vezes se confundem

domingo, 23 de setembro de 2012

(Recalque) Essa porra no chão




Aqui está quando você chega
Meu colo, colcha, o cinzeiro
Os furos no sofá já nem me importo
Mas fuma na janela hoje

Aqui estou quando você chega
Casa, abrigo, mapas
O tabuleiro bem guardado
Eu tiro as peças, atira os dados

Meu útero, teu silêncio

Aqui estamos quando você chega
Estranhos, errados, sem cabimento
O quarto não te conhece mais
Leva as fotos e anota meu número
novo

Aqui estou e você não veio
Eu ainda estou e você não veio
Eu falei para não vir e você não veio
Eu tinha ainda muito para te dizer
Mas esqueci.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Blanchot


Tudo aquilo que foi o escritor para o livro; que o livro exigiu do escritor; cada lágrima e gota de angústia; as horas; o sofrimento da escrita; o terror de nunca terminar; o terror de terminar; o amor e o tédio que levaram o autor a escrever; tudo isso é dado para que o leitor do livro faça apenas uma coisa: apague. O leitor não precisa saber. Mesmo que saiba, isso não importa para o livro. Para que a obra exista, o escritor deixa de existir. O escritor escreve para que o leitor apague o escritor.