terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Castrado

Disse-me que passara o dia comigo em pensamento e me senti só. Muito só. Tive vontade de me esconder debaixo da cama porque somos todos essa grande solidão que não se engole uns aos outros. Mas que se deseja engolir para aplacar a fome. Não pude comer nada. Mas o vazio tinha o tamanho da minha falta. De tudo o que sempre falta. Soube sem meandros que sempre faltará. Sou isso. Sou esta ausência. A mediocridade de quem queria oferecer um mundo, mas não possui nada. E nem poderia dar coisa alguma. Porque a ausência e o absurdo do outro não são de preencher. Somos faltas. No meio da rua eu estava só. E você, ao meu lado, estava só no meio da mesma rua. Uma solidão daquelas mulheres que comem terra, que mastigam a cal da parede. Uma solidão de homens com dedos cortados da linha do anzol, queimados de procurar um peixe que se deixe pescar. De banzo, você cantou e disse não me desperdice. Quem sabe soubesse que nunca mais nos veríamos. Não com os mesmos olhos. Mas você cantou Paloma como se fosse Caetano. Talvez por isso.

Uma foto contra cada ponto final e um monte de interrogações

O que movimenta um fotógrafo? Todos os fotógrafos profissionais que conheci pareciam se mover para a fotografia a partir de certa instabilidade comum. Um tipo de sede por algo que não é propriamente a imagem construída a partir de seus olhares, mas algo que ela quase revela. E a tensão entre esse “quase” e a foto em si é o que parecia lhes impelir para a próxima. Um pendular entre a satisfação e o desprazer. Como um viciado, como muitos se classificaram mais de uma vez.

Começo a entender porque algumas imagens merecem registro. A suavidade da pele num tecido fino; o início de um sorriso, pouco antes de virar sorriso de fato; o céu de Brasília entre os galhos retorcidos de um ipê. Brevidades. Mas algo se sublima nessa paixão. Fotografar é como o amor. Será que a tentativa de eternizar um momento é amar? Os amantes sempre querem que o amor seja pra sempre, que o prazer seja desfrutado eternamente... Fotografar e amar são lutas contra a morte? Amar é um não querer morrer? Fotografar é não querer morrer?

E essa luta injusta contra o tempo, contra a factualidade do inevitável não é legítima? Não é legítimo que nos recusemos a aceitar os términos (de relações, de estágios da vida, de estações do ano) como inevitáveis da mesma forma como não aceitamos que iremos morrer? Que nos rebelemos, com infantilidade ou sofisticação, contra os termos da existência? Será que o amor pode existir sem, pelo menos, se pretender eterno?

Ou talvez não seja nada disso. E a não-aceitação do fim nada tenha a ver com o desejo por fotografar e por amor.

Pode ser que o ato de fotografar não seja mais do que um desfrute. Tirar alguma beleza da existência. Sem tirar a brevidade. E pode ser o próprio amor possa se transformar em algo assim. Não mais uma batalha contra o fim. Mas uma viagem muito bem aproveitada. E a morte não é uma derrota. É só um fim. Quero uma câmera.

Aula de francês

Tu peux me lire avec tes lèvres.
Tu podes me ler com os lábios.

Tua respiração me marca.
Ta respiration me marque.

Tua barba é a minha entonação.
Ta barbe est mon intonation.

Tic -

O dia é claro e calmo e tem 24 horas.
De repente chega o desejo e estraga tudo.

Gonçalo M. Tavares

Tic -

O desejo mata o tempo melhor do que ninguém.

Quando se deseja alguém, o tempo do relógio é de mentira.


A verdade é o tempo do desejo.

E ele é sempre rápido demais.


Tão rápido que o tempo do relógio não o acompanha.

Tão rápido que, na presença,

o tempo voa.


O desejo é um assassino de tempos.

Um perverso com o tempo do outro.

Um histérico com o próprio tempo.

É sempre muito cedo ou tarde demais.


O desejo é quando o tempo quer matar-se.

Cansou-se de seu despropósito de andar.

Quer correr para ver se encontra uma parede

que lhe finde.


O desejo é quando o tempo olha para a morte

E a ama.

(...)

"De resto nunca li um livro de poesia.
Sou demasiado homem para isso.
Sou demasiado contemporâneo: trabalho muito.
Ler poesia para quê?
Eu trabalho muito, sou contemporâneo. Ler poesia para quê?"
1. Gonçalo M. Tavares. (do livro O homem ou é tonto ou é mulher)

Sorria e acene

Ando tão perdido que já passei por mim mesmo duas vezes na última encruzilhada.