domingo, 26 de maio de 2013

(Resposta a um amigo que me perguntou o que é tão deprimente nos domingos)

A melancolia do domingo não é realmente por estarmos na beira de começar outra semana.
Mas por ser o fim insuportável da que passou.
Não é a repetição que nos desespera, podemos suportá-la e aguardamos ansiosamente pela ilusão dela.
É perder que angustia.
E esse tempo do domingo, essa última hora, esse pouco antes de segunda, é tão importante porque afinal se evidencia uma improbabilidade de pesadelo:
E se, ao invés de repetir tudo de novo,
segunda nunca mais chegar?

sábado, 18 de maio de 2013

Crônica da Pólvora V

D. ligou do Sul. Disse que sente falta de Brasília afinal e viver é isso de sentir falta ou nunca sair. Prefere sentir falta. Disse que entende, agora, o que eu amo no deserto. Mesmo que eu lhe dissesse que, para mim, não era um deserto. Repetiu que entendia meu amor pelo deserto. Falou que a vida sem amor era um cruzar deserto. Poeira e cansaço. Miragem de água. Mais um dia. Menos um dia. Mas que havia gente como eu que, nas encruzilhadas de areia, fazia caravanas.

Crônica da Pólvora IV

Numa noite inesperada cheguei ao prédio de J. e disquei seu número do orelhão da rua. Não achei que ele fosse atender, era muito tarde. Mas a luz do seu apartamento acendeu e ouvi sua voz sonolenta depois do clic. Quando atravessei o umbral da porta, me dei conta de mim no olhar pasmo que ele me lançou. Eu fedia a cigarro e cachaça. Enquanto a água do chuveiro esquentava e caía desperdiçada no chão, minha voz tropeçava na língua e nas roupas e as explicações se perdiam. É como as baleias, lembro de ter dito. Elas voltam para a praia onde o caçador vai descansar o arpão. Elas vão morrer na praia, mas isso não tem nada a ver com não conseguir mais nadar. Elas precisam mostrar ao caçador a ferida que ele fez. Olha, eu sangro. É o que as baleias dizem.

Crônica da Pólvora III

Na cidadezinha em que nos conhecemos, uma vez dormimos no píer. J. me disse então que era engraçado que eu não fosse mulher e mesmo assim ele sentisse que podia dormir no meu ventre. Entrar ali e dormir ali. E me habitar. Disse-me que, com um ventre como o meu, eu logo quereria filhos. Mas eu não era mulher. Disse isso a ele, antes de nos separarmos. E fiquei muito tempo olhando os barcos amarrados no píer, e desejei que inundassem.

Crônica da Pólvora II

Pouco tempo atrás, J. teve um filho. J. nunca deixou de ser um menino e dificilmente o deixará. Mas agora o menino é seu filho, de fraldas, de peito, de leite e manha. J. ainda sabe de seu fósforo e ainda o risca no chão, mas o legará ao filho. Poucos foram mais incendiários que J. Só que isso acontece aos pais, eles esquecem. E o que os pais esquecem, os meninos herdam.

Crônica da Pólvora I

D. teme enlouquecer. Precisa ir embora de Brasília. Disse-me que é o céu e a solidão e o deserto. Precisa ir embora. São as bordas, me contou. Há um momento em que se as tateia e sabe da farsa. Numa noite eu o abracei e falei de deuses. Contei histórias até que dormisse. Ele murmurou que era como ouvir o mar, enorme e constante. As histórias são assim, presumo. Não cessam de ir e vir e quebrar sobre a areia.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Gravitacional

Se não me movo, tudo que em mim é solto ganha estabilidade. Nada se ancora em mim. Por dentro, sou uma estação espacial. Mas nada é livre da dor. Um objeto se choca no outro e o som dos estilhaços enche meu peito, que geme e mói, pede e chora. Ainda assim, não é tão grave quanto o peso que adquire um sentimento quando me movo. A velocidade do cotidiano que imprime na inércia de uma lembrança a resistência de uma força contrária.

Noutras imagens,
aquele bilhete de papel dentro de uma agenda há tempos sem abrir, com seu nome dizendo eu te amo na aceleração das 14h de dois meses depois - foi um tiro
.