- Vamos começar?
- Quando você estiver pronto - me disse com um gesto da mão, como se concedesse licença.
Observei as manchas na pele. Pressenti as dores da velhice. Mas não senti o pânico usual que os velhos me provocam quando despertam piedade. Achei um pouco fascinante.
- Quantos anos você tem?
- Mais de três vezes o que você tem, mas não muito mais, eu imagino.
Sorriu. Eu também. Ele sabe exatamente o motivo da pergunta, pensei. Não muito mais, senti um arrepio pensando nas mensagens subliminares disso.
- Gosto do brinco - ele me disse, acho que para cortar um pouco a unilateralidade da entrevista. Ou talvez isso fosse importante para ele também. Devia ser.
- Obrigado. Nunca pensou em colocar?
- De novo? Não. Nem em deixar o cabelo crescer novamente, embora seja grato por ter sido poupado da calvície. Suponho que nunca perdemos a vaidade, realmente.
- O que é uma pena.
- Depende.
- Do que?
- Não perdemos a vaidade, mas podemos perder esse pesar por não perdê-la.
Anotei isso. Ele riu.
- As palavras soam sábias, mas são só belas frases. Isso nós perdemos também.
- O gosto por belas frases?
- Não. A ânsia por sabedoria. Que não é nem um pouco sábia. Uma contradição tremenda, não é? Mas você se torna mais sábio quando abre mão de querer ser sábio. A sabedoria vira uma surpresa. E muitas vezes ela não faz a menor diferença. Você não faz ideia do que me perguntar, faz?
- Eu preparei algumas perguntas, sim. Mas agora ela parecem banais. Pequenas. Ou tão gigantescas que parecem absurdas.
- Como o que?
- Como "como é a vida de escritor?"
Ele riu de novo.
- Trabalhosa, se você puder se desvencilhar do egoísmo e escrever de verdade. Como qualquer outro trabalho. Na verdade, a criação é a parte mais simples. Os prazos, as metas, os planos, tudo isso é que é o pulo do gato.
- Mas todas essas coisas não matam a criatividade?
- É um tipo de morte, se você parar para pensar bem. Mas o tipo de morte que compreende a coisa numa outra vida. A criatividade encarna num livro, pode-se dizer. Numa obra que já não se pode alterar, que não cresce em tamanho ou em qualidade. A menos que você produza outra.
Desse ponto em diante, lembro que a conversa ficou dinâmica.
- Olhando por esse aspecto o livro é um objeto morto.
- Reencarnado.
- Mas já não é pleno em potencial.
- Não para quem o escreveu.
Subitamente, entendi.
- Entendi. - disse a ele, para, em seguida, ter a nítida sensação de que já havia esquecido.
Ele riu.
- Não se preocupe tanto. No fim, você saberá como lidar com cada coisa quando ela surgir. A gente nunca esquece de verdade, sabe? O segredo é confiar nisso.
Então acordei. E passei um tempo pensando sobre por que o mais importante que eu tinha a me perguntar era a respeito de ser um escritor. Achei um pouco obsessivo, na real. Eu podia ter perguntado sobre filhos. Sobre doenças, sobre, sei lá. Mas foi isso que eu perguntei. E foi essa a resposta que eu ganhei. Parece meio piegas olhando agora. Foi o que eu disse para você.
Acho que você só queria saber se eu estaria com você depois de todos esses anos, mas ele não me disse nada a esse respeito. Nem eu perguntei, desculpe. Suponho que ele/eu tenha achado graça na ideia de que eu nunca saberia, só vivendo. Te disse isso e você disse: "Bem a sua cara". E eu concordei e me dei conta de que ele provavelmente estava me sacaneando o tempo todo. "A ânsia por sabedoria não é sábia", ele tinha me dito. Exatamente o tipo de frase capaz de quebrar minha cabeça. Então rimos. Eu e você. E ele em algum lugar no futuro. "Acho que vou ser um velho bem simpático, amor". "Vai sim". Então acordei. E você estava lá.
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