"O domínio do escritor não está na mão que escreve, essa mão 'doente' que nunca solta o lápis, que não pode soltá-lo (...) O domínio é sempre obra da outra mão, daquela que não escreve, capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do lápis e de o afastar."
Maurice Blanchot
Achei
um relógio velho numa gaveta. Comprei tem dez anos.
Não usei porque era muito pesado, e também porque não gostava de relógios e ele
brilhava muito. Na época fiquei arrependido. Era minha primeira
viagem para o exterior e aqueles euros podiam ir embora em coisa mais divertida.
Eu nem gostava de relógios. Na verdade, depois daquele relógio e do
arrependimento, fixei na ideia de que nunca usaria relógios. Isso, sim, foi a vantagem da compra. Como já tinha um relógio, não precisava de mais nenhum para saber que não era, afinal, uma pessoa de relógios. E segui
de braço solto, livremente atrasado, pelos dez anos seguintes.
O
estranho – é até provável que alguém não acredite – foi que andei pensando nesse relógio. Hoje mesmo, na verdade. Estive lembrando de quantos relógios de aniversário ficaram guardados até que a bateria esgotasse. E acabaram repassados para gente
mais pontual. Lembrei porque, veja só, pensei em comprar um relógio.
Cheguei a refletir que meu braço talvez já não se incomodasse tanto. Que já não me atraso para
tantos compromissos e que acho um pouco bonito, um pouco antiquado, em tempos de Iphone, usar um relógio no pulso.
E lembrei desse relógio de Roma,
dos 14 anos, das decisões.
Quando abri essa gaveta inocente e o achei, parei
por um minuto, meio chocado e coloquei o tal relógio no pulso. Mas, dessa vez,
no direito. Percebi, enquanto ajustava os ponteiros, que usei ele errado da
primeira vez. Canhoto, naturalmente coloquei ele no punho esquerdo. Os
relógios talvez não tenham sido feitos para gente como eu.
Dessa
vez, contudo, ele pareceu perfeitamente alinhado. Achei esquisito. Olhei com
certa desconfiança, meio contrariado desse alinhamento repentino. Deixei
passar. Ele já não brilha tanto. E funciona, depois de dez anos. Resolvi usar
por alguns dias... Talvez só até amanhã. Sem muito apego, meio coração duro,
meio infantil. Como um desses cachorros maltrapilhos que a gente adota e depois
perde o interesse. Mas aí lembrei que são decisões dessas, tomadas assim,
casualmente, que nos definem. Senão por uma vida, talvez pelos próximos dez
anos.
Será que é assim tão ruim se alinhar um pouco? Pertencer? O pulso preso
na demora e na pressa. Uma agonia foi surgindo. Saber constantemente que o tempo
está passando. E se nisso de saber a hora eu já não tiver tempo de saber de mim?
Mas
hoje eu já conheço essa agonia. Essa agonia nunca foi embora. A verdade é que
ela é muito mais fiel que esse relógio que me esperou dez anos na gaveta. Essa
agonia canhota nunca me deixou ser completamente alinhado. E nunca vai deixar.
Ela é que escreve compulsivamente, que agarra a caneta, que foge do tempo. E
sempre vai fugir.
Acariciei o relógio já não tão brilhante, e ele me disse que
faltavam cinco minutos para meia noite. Me disse ali do lugar dele, na mão
direita, que era preciso ser responsável por ele. Responder pelo tempo. Pelo dia que terminou agora e começa outro. Pela
escrita. Pelo texto. Pelo cachorro maltrapilho que se adota, mesmo que ele seja
só metafórico.
Já deu a hora.