sexta-feira, 31 de outubro de 2014

buracos de ir

Ouço o canto do abismo e o conto cavernoso dos buracos semi-tamponados de vaginas esquecidas de sua possibilidade de criação. Ouço o cu do mundo, inventando merdas, despejando sua ingrata generosidade nos malfadados herdeiros de pai ausente. Ouço mães enormes que não sabem onde começa a mulher e termina a filha, ouço meninos que se querem paus cada vez maiores, ouço - mas aí é pouco - alguma loucura. Porque há salvação. Mesmo que ninguém salve ninguém. E do que mesmo que se salva? De uma existência sem graça, eu acho. Ouço algum riso.

Ou sorriso.

E você? Por onde tem rido?

sábado, 28 de dezembro de 2013

Crônica da Pólvora IX

Era cansativo em V. a continuidade de sua estranheza. Mesmo em casa, mesmo ao escovar os dentes, mesmo ao se olhar no espelho, os olhos de V. tinham essa alienação de qualquer normalidade, de qualquer mundanidade. V. era sempre extraordinário, no que a palavra contém de mais literal. Isso em V. que era tão completamente alien exigia meu olhar de tal maneira, que chegava a me perguntar, será que V. existiria se não fosse visto? Era preciso que eu o olhasse a todo tempo, pois sua falta de sentido, de materialidade mesmo, me exigia. O mistério que ele propunha era se, afinal, desejava. A disposição de atrair meu desejo, qualquer desejo, sua posição perene como desejado dizia que ele desejava o desejo. Mas se era por si próprio desejante, se podia desejar pura e simplesmente, era uma incógnita. Eu não assumia, já de partida, que V. fosse incapaz desse malabarismo, de sofrer a angústia para além de só causá-la. Isso seria esvaziá-lo. Torná-lo opaco e transparente ao meu olhar. E havia qualquer coisa em V. que me fazia querer continuar esse produzir palavra, esse dizer incessante para conseguir dizê-lo de fato, sem o dizer de todo.

V. alimentava meu desejo de fome. 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Vislumbre do Aleph


A imagem que me retorna é esta: um homem preso numa torre de biblioteca. As únicas janelas são os livros, deles é possível respirar. Mas o homem não sufoca quando o vejo, o homem não é preso na torre por falta de portas, mas por força da vontade. É a espiral da torre que o desconforta. A torre se contorce, como uma serpente, e os livros desaparecem entre andares. Há dois personagens nessa cena, o homem e a torre. E cada livro, cada centena de milhares de livros, desconforta esse homem da biblioteca. Porque ele lê cada frase, frase a frase, e, por não acreditar no tempo, não o perde nunca. Antes conhece cada frase a ponto de que um livro demore talvez meses, um ano, algumas vidas, até ser lido na íntegra. Mas o homem não perde tempo. Ele gasta cada minuto, cada sol, degustando uma frase, em oração, de seu período. Assim ele é feliz, pouco, mas entre pedaços. É o livro, é a literatura, é a torre que o desconfortam. Porque o todo, o todo só existe assim. Em angústia. O todo é o abismo. A torre serpentina, as letras do mundo, são o abismo. E o homem caminha nas bordas, uma palavra por vez.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Marrano - Rascunho I

Há um rastro borgeano em minha alma.

Morrer cercado de livros que não li; e, mesmo dos que li, não escapar de não relê-los. As palavras enjauladas, soltar na leitura, saltar o olhar, perder letras na língua solta, para voltar a prendê-las no esquecimento.

Sempre de novo a primeira vez desde a primeira vez que já era o retorno do marinheiro, da cicatriz, do reconhecimento, da suspeita que já era saber, ter sabido, incessantemente, nenhuma inocência e, ainda assim, perdê-la. Esperar perder Penélope.

Partir e retornar. Nada é realmente chegada. Meu mar de livros, meu navio cama, o canto sedutor de novos volumes. Sou Ulisses, sei como vencer as sereias. 

Mas não o desejo. Não desejo a areia. Não desejo nem a chegada nem o novo. Me perco no mar. Não amo a areia, não amo o deserto. É sempre já ter estado lá. É sempre ter perdido antes de chegar.

Vejo arder a cicatriz, pedindo um recomeço, um tempo outro, que se fechem os livros, mas o sol e o sal me dão o gosto já conhecido. Nunca o novo. Seguir o rastro, seguir a letra, a linha que garante estar entre. Nunca dentro. Nunca fora. O livro aberto.

À água, meu castigo e lamento, meu amor; à biblioteca, ao navio, à viagem. A nunca chegar.


Estive em duas cidades. Sempre no meio.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A rocha persiste em vigilante aguardo da próxima onda,
é pétrea vontade que a sustenta frente ao mar;

Ergue-se o rochedo para um sol generoso,
inteira ela é os sulcos cavados as salinas,
o que cresce nas salas escuras,
o escuro,
o musgo,
o escorpião do mar e o caranguejo.

Mesmo os pedaços da pedra lascada
sabem do destino da rocha frente ao mar.
Nas tardes chuvosas,
o vento o grita sem piedade e com zombaria
não é segredo à rocha, nem mistério,
o seu fim trágico, perene desgaste, membro à membro

A rocha persiste.

Frente à morte,
à dissolução onda a onda,
ao embate mortal contra o mar,
ao nada,
a rocha persiste.

É que sem o mar,
a rocha seria apenas pedra ou nem isso.
sem o mar,

Não haveria o tempo!;

persistência firme de saber que não há dignidade sem espera,
que a rocha não se ergue em sua qualidade de rocha,
sem o impacto que suporta sem ceder.

A rocha sabe que o mar, enfim a devorará,
e sem que se entregue,
e sem que se esquive,
a rocha o ama

domingo, 21 de julho de 2013

Crônica da Pólvora VIII

V. soube o que eu fazia de um amigo sentado a seu lado na mesa. Sorriu abertamente e, num desses momentos em que a balbúrdia se torna murmurinho, acabou falando alto demais, quase gritando, que queria que eu fosse seu analista. A mesa emudeceu, aguardando resposta, o bar inteiro. Eu demorei o olhar. Ele estava numa ponta da mesa e eu em outra. Eu sentado, de pernas cruzadas, óculos, minha armadura de trabalho, minha fantasia; e ele de roupas coloridas, uma camiseta com um decote imenso no frio e uma tatuagem no peito, mas, acima de tudo, vestido com os olhos. Olhos imensos. Olhos puxados como um gato, mas enormes e tremendamente castanhos. Não se fala muito sobre os olhos castanhos; como se um olho fosse apenas castanho e isso fosse fato acabado, sem nada mais a dizer. Os olhos de V. punham esse estereótipo por terra. Diziam muito de serem castanhos e não cessavam.  E eu lhe disse que não. Não daria conta de sua psicodelia. A espera se desfez em risada, mas V. não riu. Olhou-me fundo e respondeu que era mentira. Eu não o analisaria, provocou, porque os psicanalistas não devem amar. E minha fantasia não o enganava, eu era um amante do caos. Foi assim que nos conhecemos.

domingo, 30 de junho de 2013

Crônica da Pólvora VII


Estou de volta àquele cais. Estou de volta aos iates e veleiros, estou de volta ao início da Bahia de Dorian, estou de volta à praia, ao mar, às reminiscências. O tempo não passa na memória, mas as memórias passam, embora não as vejamos passar. Não lembro de tudo. Não lembro do gosto dos lábios de J. naquele primeiro beijo que ele me roubou, não lembro do que ele disse entre risos, não lembro da minha negativa, não lembro do poema que recitei, não lembro do que lembrava na hora, não lembro de lembrar de M., não lembro de não chorar, não lembro de tudo. Este cais não é o cais de M. Este óleo das águas deste cais, estas velas, não foram parte das expedições de M. M. desprezava minhas lembranças. M. que possuía o mar e agora possui a selva de pedra, enquanto eu só possuía o deserto. M e eu. J. entre nós. E o cais e o mar e o gelo.