terça-feira, 21 de junho de 2011

Não

- Deixe aí.

Eduardo olhou assustado para Enrique.

- Deixa ele aí, Eduardo. Vai morrer antes de você conseguir levantar o galho.
- Mas eu preciso tirar ele daqui debaixo, pai. O galho caiu porque você jogou a bola nele.
- Eu sei, Eduardo, mas não tem o que fazer. Olha como o galhou entrou. Provavelmente perfurou o tórax. Se você mexer, ele vai sofrer mais.

Enrique não queria que o filho visse o sangue escorrendo ou as tripas do passarinho espalhadas no chão, por isso o segurou pelo ombro. Se Eduardo mexesse um pouco mais no galho, o pássaro se abriria como uma caixinha de música, ele sabia. Então o menino veria um amontoado de entranhas escuras. Se fosse Pedro, Enrique o teria deixado prosseguir, porque o outro filho se veria deslumbrado numa curiosidade um tanto tórrida, mas perfeitamente natural pelo funcionamento interno de um ser vivo. Mas Eduardo já estava à beira de uma crise de choro. Gemia a cada pio do bicho, a pele arrepiada com o pressentimento da morte. "PAI!", ele tinha gritado com uma recriminação acentuada no grito. Esse tom de voz com o qual Enrique estava começando a se acostumar e parecia sempre vir do filho. Tinha gritado antes que Enrique pudesse entender que a bola não o tinha acertado quando a chutou, talvez com mais força do que devia - agora pensava com arrependimento.

Queria achar que Eduardo estava prestes a chorar e ia se deixar levar pela sua mão. Mas não, o filho se esquivou.

- Anda, Du - tentou dizer com ternura.

Eduardo colocou o rosto tão perto do chão, para ver com mais exatidão onde o galho tinha atingido o pássaro, que sua bochecha chegou a tocar no sangue.

- Levanta daí, Eduardo - disse, querendo ir embora e contrariado com a teimosia do filho.

A voz veio fria:
- Não.

Enrique puxou o filho. Nem tanto pelo sangue, nem tanto pelo chão. Mas pela desobediência. Pela insolência. Nesse gesto, no momento do gesto, lembrou do rosto do pai num flash e seu aperto se afrouxou. O filho, que tinha o corpo mole, escapuliu pelos dedos sem resistência. Uma promessa velha de nunca obrigar um filho a não fazer o que não quisesse roubou sua força. Quase, pensou. E então olhou para o filho cheio de culpa. Mas o garoto estava distraído. Parecia até não ter percebido a interrupção do seu escrutínio sobre o pássaro semi-morto, sobre aquela morte inútil, e muito menos se importar com os duelos internos do pai. Não. Enrique olhou admirado. Pedro teria pedido para abrir o passarinho. Não, não como quem luta. Não simplesmente como quem não irá. Não como quem sabe que não irá. Não era um desrespeito do filho. Era uma constatação de quem ele era. Ali, bem ali, o garoto dava os seus termos ao pai. Não. E o rosto dele voltou a encostar na pequena poça de sangue. Não e aquele pássaro morreria de fato. Mas não sozinho. E talvez Enrique fosse culpado quando Eduardo chegasse em casa e dissesse à Claudia O pai matou um canário. Não e Enrique achou que o filho trocaria de lugar com o pássaro se pudesse e, por um minuto, teve medo de quantos galhos jogaria ainda, por descuido, sobre esse menino tão disposto a ser um mártir. Tão disposto a lhe enfrentar assim, com seu sofrimento, a lhe enfrentar sem lhe infligir outra dor que não a própria. Não. E Enrique pensava se os homens sempre matam os filhos de algum jeito. Não.

- Vamos esperar até ele ir. E então o enterramos. Depois vamos para casa, tá bom, filho?

Eduardo o olhou. E o viu.