terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A morte é um milagre

Vóvó se foi. Voltamos todos a ser crianças desde o momento em que ela adoeceu. Quando a notícia chegou, nos aninhamos uns nos outros e nos afastamos dos demais, não por orgulho, mas porque só podíamos conviver com os que sentem a mesma dor, senão a solidão nos devora. Mas não ficamos mais de um minuto sozinhos, porque minha avó tem muitos netos. Netos adotados, netos auto-proclamados que de bom grado abaixavam a cabeça para ouvir suas broncas e comer seu feijão. Minha avó cozinhava como quem diz “eu te amo”. Abundantemente. O tempo inteiro. Cozinhava e, cozinhando, multiplicou a família. Eu não aprendi suas receitas. Não aprendi como fazer o bolo macio e fofo. O cuscuz doce com leite de coco. O pudim. Mas aprendi a brigar como ela. A chamar atenção dos amigos. Dar broncas, me meter onde não sou chamado. Aprendi a me importar. A estar por perto, puxar para um abraço. Minha avó era generosa com o que tinha. Era extremamente sentimental e, por isso, durona. A um tio meu ela dizia para não baixar a cabeça quando chorasse. Chorasse de cabeça erguida, deixando o vento levar as lágrimas enquanto levantava da queda. Minha avó era exímia na arte de levantar. E também era corajosa. Fomos grandes companheiros de aventuras na minha infância. Cruzamos o amazonas de navio, Belém de ônibus e o mercado do Ver-O-Peso a pé. Quando cresci, ela reclamava do meu jeito desleixado e do cabelo cumprido, mas gostava que eu me escondesse da família para ficar lendo numa rede no seu quarto. Minha avó sabia curar com banhos e ervas, contava histórias trágicas e fantásticas sobre assombrações e desconfio que ainda amava meu avô. Gostávamos de conversar na cozinha. Uma vez me disse que, se pudesse ter escolhido uma profissão, seria detetive. Porque sempre adivinhava o final dos filmes e novelas. Gostava de me sacanear e beliscar quando me via ensimesmado. E de me mandar lavar uma louça para curar angústias existenciais (método infalível, constatei com os anos). Tinha uma risada inconfundível, era excelente contadora de piadas e seus olhos enchiam d’água quando gargalhava. Como se dissesse que, apesar de tudo, a vida ainda lhe dava presentes. Da última vez que nos vimos, falamos sobre as crianças ribeirinhas que seguiam o navio Catamarã, quando fazíamos o trajeto Macapá-Belém pelo estreito do município de Breves. Eram meninos e meninas que se aproximavam em barquinhos e para quem os passageiros – nem tão mais abastados – lançavam roupas velhas, brinquedos e comida em sacolas de plástico. Ela se lembrou rindo de quando eu, com uns seis anos de idade, fui tomado por um arroubo de compaixão sem limites numa dessa viagens e quis arremessar tudo o que tínhamos. Inclusive a roupa do corpo. Perguntou se eu lembrava. E eu lembrava. Então, por um momento, tive a certeza de que estávamos pensando a mesma coisa: A vida foi muito generosa conosco. Agora, vóvó se foi. E a morte dela é como um milagre que vem me mostrar o quanto sua vida foi preciosa. O quanto toda a vida é preciosa, frágil e vasta, porque se morre. E pelo quanto posso ser grato. Pelo tempo, pelas horas e por todo o amor que recebi. Esse amor que agora me sobra em palavras que não pude dizer, em gestos que não tive. Amor a mais. Amor que resta. Amor que fica. Vive-se.