sábado, 28 de dezembro de 2013

Crônica da Pólvora IX

Era cansativo em V. a continuidade de sua estranheza. Mesmo em casa, mesmo ao escovar os dentes, mesmo ao se olhar no espelho, os olhos de V. tinham essa alienação de qualquer normalidade, de qualquer mundanidade. V. era sempre extraordinário, no que a palavra contém de mais literal. Isso em V. que era tão completamente alien exigia meu olhar de tal maneira, que chegava a me perguntar, será que V. existiria se não fosse visto? Era preciso que eu o olhasse a todo tempo, pois sua falta de sentido, de materialidade mesmo, me exigia. O mistério que ele propunha era se, afinal, desejava. A disposição de atrair meu desejo, qualquer desejo, sua posição perene como desejado dizia que ele desejava o desejo. Mas se era por si próprio desejante, se podia desejar pura e simplesmente, era uma incógnita. Eu não assumia, já de partida, que V. fosse incapaz desse malabarismo, de sofrer a angústia para além de só causá-la. Isso seria esvaziá-lo. Torná-lo opaco e transparente ao meu olhar. E havia qualquer coisa em V. que me fazia querer continuar esse produzir palavra, esse dizer incessante para conseguir dizê-lo de fato, sem o dizer de todo.

V. alimentava meu desejo de fome. 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Vislumbre do Aleph


A imagem que me retorna é esta: um homem preso numa torre de biblioteca. As únicas janelas são os livros, deles é possível respirar. Mas o homem não sufoca quando o vejo, o homem não é preso na torre por falta de portas, mas por força da vontade. É a espiral da torre que o desconforta. A torre se contorce, como uma serpente, e os livros desaparecem entre andares. Há dois personagens nessa cena, o homem e a torre. E cada livro, cada centena de milhares de livros, desconforta esse homem da biblioteca. Porque ele lê cada frase, frase a frase, e, por não acreditar no tempo, não o perde nunca. Antes conhece cada frase a ponto de que um livro demore talvez meses, um ano, algumas vidas, até ser lido na íntegra. Mas o homem não perde tempo. Ele gasta cada minuto, cada sol, degustando uma frase, em oração, de seu período. Assim ele é feliz, pouco, mas entre pedaços. É o livro, é a literatura, é a torre que o desconfortam. Porque o todo, o todo só existe assim. Em angústia. O todo é o abismo. A torre serpentina, as letras do mundo, são o abismo. E o homem caminha nas bordas, uma palavra por vez.