segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Pedido de Reveillon


Fazia algum tempo que ele não me ligava. Há um mês ou mais eu havia ligado, mas ele não atendia. Foi um não atender que dizia que alguma coisa sobre não ligar. Assim, não liguei. Agora me via atendendo com aquela calma de quem assiste a um filme. Foi dizendo que estava sozinho em casa com uma amiga, os pais viajando. Era engraçado aquele dele receio de convidar, de dizer. Esperei, sorri e esperei.

Estava com o mesmo sorriso quando a porta do elevador abriu. Um sorriso de olhar para baixo, rindo do chão. Me chamou de querido. Sempre me chama assim e é verdade de algum jeito, porque sempre me sinto querido, quisto ou bem-vindo, enfim. Já não tinha nada daquele receio. O mesmo receio da última vez que nos encontráramos; andando depressa, ansioso, a boca endurecida, os olhos correndo aos lados, a despedida apressada. O mesmo receio do telefone; o medo do meu não, o medo do meu sim. E eu sorrindo, esperando aquele “querido”.

Deitamos no sofá, um filme qualquer da amiga e eu assistindo este filme dele, notando, anotando. Seu cheiro me distraindo, inspirando. Ele vira de súbito, com um sorriso tão grande que parecia uma risada “Vamos pro quarto, querido”. Nenhuma pergunta. A amiga ficou na sala, dormiu, viu filme, fez um café. Todo mundo é solitário em alguma noite, mas essa não era a nossa. Ele sabia disso, daí ria. Ria com o vento frio, ria do lençol, ria uma risada gostosa, de menino brincando na praia.

No meio da noite me acorda; não fala, mas tem medo. Tem medo do barulho do vento, tem medo de se afogar no meu sono e tem medo desse meu sorriso, desse sorriso calmo, que nem eu sei de onde vem. Começa uma fala gaguejada, parando nas frases, voltando atrás. Espera minha insistência, finge que se irrita com a minha curiosidade. Pergunto pelas beiradas. Quero entender esse receio que dá o ritmo de todos os encontros. Não porque quero que mude. Não porque não o aceite, pelo contrário. Ele me intriga, esse gaguejar eloqüente. Uma história se querendo contar.

“Sabe, querido ”, ele disse, simplesmente “Eu já conheci muitos filhos-da-puta”, e não diz mais nada. Então minha curiosidade vira tristeza. Porque naquele silêncio não tinha mais gaguejar. Só silêncio e frio. E veio surgindo em mim uma vontade enorme de dizer todo o resto. De dizer que os filhos da puta estavam aí e que vida tem disso de quebrar o coração da gente. Mas que nada é para sempre, nem a alegria nem a tristeza. Veio uma vontade de falar do mar, para ver se ele ria de novo aquela risada de praia. Vontade de contar que eu nunca tive medo do mar, que queria me agarrar nas ondas e ir embora agarrado nelas, puxado pelos dedos, mas elas quebravam na areia me fazendo engasgar.

E de dizer finalmente que não dá para se agarrar a uma onda, por mais que se tente, mas que desapego também não é isso. Desapego não é se sentar no seco, num lugar que a onda não chega. Desapego é mergulhar. Vendo a maré encher, sentindo-a passar. Mas não disse nada. Talvez por covardia, talvez por não querer ser também um filho da puta prometendo mais do que podia cumprir. Só o apertei mais forte no peito e, naquele quarto frio e seco, pedi que não tivessem roubado a vontade daquele menino de entrar no mar.

Um comentário:

Gustavo Paiva disse...

Não é só Caio F. que te entenderia.
O mar causa medo a muita gente, principalmente este mar... inclusive a mim.
Belo texto!